domingo, 23 de maio de 2021

MINHAS MEMÓRIAS DE INFÂNCIA - CAL/1970

 

Caro leitor, que saudade!

2021 tem se mostrado um ano tão cheio quanto seu antecessor, nós temos nos empenhado para o Carta continuar com, pelo menos, duas postagens mensais e pedimos desculpas pelo sumiço. Em meio a vários projetos pessoais e comuns dos membros da equipe, estamos organizando as perdas e transtornos ainda vividos, então peço-lhes a compreensão.

Contudo, para não dizer que tudo são males, informo a todos que temos um projeto no You Tube, no canal Carta Ilhagrandense, deixarei o link no final do texto. Lá estão postadas: todas as lives; o Debate Político de 2020 completo; e o projeto para a discussão de temas relevantes da sociedade, tendo como tema inicial “Os Padrões de Beleza Feminina Atuais”. Assim, contamos com seu apoio lá também. A equipe está engajada em um grupo de estudos chamado Filhos do Delta, buscamos compreender o Delta e as relações existentes nesse emaranhado de ilhas e aguardamos ansiosos o fruto do nosso empenho, então esteja conosco! O texto de hoje já é um fruto suculento desse novo espaço. Unindo as gerações mais distantes, o grupo faz despertar o entendimento que cada um tem da Ilha (cidade) e das ilhas (delta).

O senhor João Batista Sales é ilhagrandense, tem 52 anos e há 33 mora no Distrito Federal. Em nossos encontros, sempre mostra a Ilha que ele conheceu e que até hoje guarda consigo. Sugerimos ao Batista, a produção de um relato de vida, ou seja, que ele contasse algumas de suas vivências nessas terras, e ele topou. Diz que seu maior sonho é voltar a morar em Ilha Grande, nossa cidade hospitaleira que, como uma mãe, saberá receber seu filho de volta.

Você até pode pular essa parte e ir direto para as memórias do senhor Batista, mas acredito que uma pequena introdução, dando algumas informações fundamentais sobre como era a Ilha, principalmente para os leitores que talvez não conheçam nossa cidade, não fará mal. 

Na época das memórias, o território que compreendemos como a cidade de Ilha Grande era apenas um salpico de casas dividas em povoados: Tatus, Cal, Baixão, Morros da Mariana, Canto do Igarapé, Labino e Barro Vermelho, são exemplos de comunidades que vingaram e consagraram-se bairros após a emancipação política de 1994. Algumas comunidades como Cutia e Cana Brava tinham, proporcional à época, números consideráveis de habitantes. O fato é que o morador da Ilha era um produtor em potencial. Da cana de açúcar ao arroz, da criação de gado ao extrativismos vegetal, logo, era mais conveniente morar próximo à sua fonte de renda. Ocorreu que, com o enfraquecimento desses mercados e com o crescimento da mobilidade urbana, as famílias tenderam a migrar do extremo norte da Ilha para comunidades mais centrais. Ainda em meados dos anos 90, as últimas famílias abandonaram a Cana Brava; o Cutia, por sua vez, apresenta resquícios de ocupações de outrora, como é exemplo a moradia do senhor Pedro Militão.

Com exceção dos Morros da Mariana, que nesse período já tinha expressivo número de habitantes, noticiado inclusive em jornais, as casas que formavam os povoados eram distantes umas das outras, separadas por matas de árvores nativas. Eram habitações de taipa, sem água encanada e com luzes de lamparina; o piso era de areia branca, portas de esteira de palha. As mães lavavam roupas no rio e nas lagoas, rodeadas de crianças, enquanto os pais estavam nas roças com os filhos adolescente. Não havia ruas, somente veredas, portanto, sem carros e com fluxo fluvial bem mais utilizado para escoar a produção ao invés do entretenimento. Dito isso, apresentamos a seguir os relatos de memória de João Batista. Boa apreciação!





MINHAS MEMÓRIAS DE INFÂNCIA

A década de 1970 foi marcante na infância de todos aqueles que eram crianças nascidas e criadas em ILHA GRANDE/PI. Estávamos descobrindo as curiosidades do mundo de nosso pequeno povoado, muitas novidades começavam a chegar ali, duas são as mais marcantes: a chegada da energia elétrica e a construção da tão esperada ESTRADA, mas vamos falar disso no final da nossa conversa.

Falaremos especificamente de minha comunidade, o CAL, cujas terras eram divididas entre as seguintes famílias: os THÓMAS, representados na pessoa do senhor ESTENÍL; a família GALDINO, representada na pessoa de Patriarca, o senhor FRANCISCO GALDINO (Chico Galdindo); mais ao centro estava uma parte da família PEDRO, representado pelo seu patriarca, o senhor MANUEL PEDRO; e já na divisa com o Tatus situavam-se as terras dos VICENTES, representados pelo seu patriarca, o senhor JOSÉ VICENTE, vulgo Zé Vicente.

Nessa época, os moradores que não fossem parentes de primeiro ou segundo grau dessas famílias eram agregados. A família dos SUPRIANAS, a qual eu faço parte, era agregada do senhor ZÉ VICENTE, morávamos onde hoje os morros brancos já chegaram, à beira da estrada, ou seja, na extrema do CAL com o TATUS.

Foi neste pedaço do CAL que passei boa parte de minha infância, o ano era 1974 e foi quando pela segunda vez, meu pai conhecido pela alcunha de ZÉ MARRECA viajou para tentar a sorte na construção da CAPITAL FEDERAL. Minha MÃE, grávida do terceiro filho, ficara mais uma vez sozinha e assim como ela, muitas mulheres que eram conhecidas como as VIÚVAS DE MARIDOS VIVOS; isso porque seus companheiros viajavam em sua maioria para BRASILIA, local a mais de dois mil e cinquentas quilômetros dali.  Dessa forma, a vida que já não era nada fácil ficava ainda mais complicada. Fui testemunha de fatos marcantes que ficaram registrados em minha memória, e nesse texto vamos lembrar de dez acontecimentos ou memórias da minha infância.


 

 

PRIMEIRA MEMÓRIA

A escassez de alimentos era a pior já vivida, em outras palavras, a fome. Com a saída dos maridos, muitas mulheres formavam um laço familiar com outra, geralmente uma parente próxima, para juntas amenizarem o sofrimento. Minha mãe, a dona FRANCISCA, fortaleceu esse laço de amizade e familiar com minha tia CONCEIÇÃO, que também já era mãe de duas meninas, mas com a sorte de não ter ficado grávida, pois seu marido, o senhor VÉI SUPRIANA, também havia viajado. Juntas, trabalhavam de diárias na ROÇA, sempre ao cair da tarde, já praticamente anoitecendo, minha mãe ia para cozinha preparar o que tinha para ser o jantar daquele dia: quase sempre era um mingau de arroz com farinha de puba ou um pirão de acará, que na maioria das vezes era ainda a primeira refeição do dia.

Minha tia CEIÇÃO tinha como missão levar as quatro crianças para o terreiro da casa, local onde havia uma areia branquinha, a lua começava a se levantar rompendo as matas de cajueiros que cercavam a casinha de taipa; e ali ela contava várias histórias e nós viajávamos longe. Entretanto, eu voltava rapidinho das minhas viagens, pois a barriga doía muito e, de vez enquanto, minha tia era interrompida com uma pergunta: “Tia, vai demorar muito pra a gente comer?” Lembro-me de que, na maioria das vezes, ela passava a mão nos olhos e, olhando em direção à porta da casa, esperando algum sinal, dizia “logo logo vai sair” e continuava as historinhas.

SEGUNDA MEMÓRIA

O ano era 1973, aconteceu um fato que marcou o pequeno povoado do CAL: o assassinato de um morador. Já era tardezinha quando a notícia se espalhou, em uma briga de arma branca com o , seu algoz, esse senhor levou uma facada bem abaixo do peito, golpe que acabou sendo fatal, este caiu em frente à casa do seu JOÃO ARMANDO. Naquele momento, o pequeno povoado todo parou para testemunhar esse acontecimento. O fato deixou uma viúva e mais quatro órfãs.

Até hoje lembro da real pobreza que era naquele tempo, pois quando alguém vinha a óbito, uma porta da casa do falecido era arrancada e usava-se quatro tamboretes, caso não houvesse, pedia-se emprestado na redondeza e colocava-se essa porta sobre os quatro tamboretes, um em cada canto. Sobre a porta estendia-se o corpo do defunto. Durante a noite toda, o corpo era velado sob muita REZA, CACHAÇA, CAFÉ e já pela manhã, às vezes, mas raramente, à tardezinha, os homens eram responsáveis pelo cortejo do enterro: trazia-se uma madeira, sempre um caibro de mangue, de três metros, amarrava-se a rede neste caibro, formando uma espécie de balancinha, e o corpo era colocado dentro dessa rede. Dois homens, um na frente e um outro atrás, carregavam a rede com o corpo, ruas a fora num cortejo de pessoas cantado e rezando atrás do morto.

Chegando ao local onde se realizava o sepultamento, o corpo era retirado da rede e enterrado somente com a roupa que estava vestido, e a rede era devolvida aos seus familiares, que sempre lavavam e a utilizavam novamente, tudo isso porque eram grandes as necessidades financeiras. Assim sendo, na maioria das vezes, nem dinheiro para comprar um caixão tinham, por isso era comum enterrar seus entes queridos diretamente na terra; somente os abastados, os donos de terras ou grandes comerciantes, poderiam ser velados e enterrados num caixão.

TERCEIRA MEMÓRIA

Em janeiro de 1974, outro fato veio marcar o povoado, a morte do senhor BENDITO PEDRO, o que marcou na verdade foi a forma de como isso aconteceu. Segundo as lembranças, ele tinha extraído um dente, no dia seguinte montou em seu cavalo e foi para o Cutia junto com o ÉDIL GALDINO. Nos solavancos da montaria daquele dia, juntamente com o sol escaldante e muito calor, uma temperatura acima de 40º, foi fatal. Lembro que ainda em cima do cavalo ele começou a passar mal e sangrando muito, foi colocado em baixo de uma árvore e o ÉDIL, sem saber o que fazer, deixou ele sozinho nessa árvore e veio para o povoado muito distante em busca de SOCORRO. Muita gente se mobilizou e foram em busca do senhor Bendito Pedro, mas ao chegarem ao local, ele já estava sem vida, deixando uma viúva e três filhos, além do sonho de trabalhar na construção da capital federal, pois sempre que podia passava na casa do ZÉ MARRECA, meu pai, para confirmar uma viagem que fariam juntos à BRASILIA.

QUARTA MEMÓRIA

O ano era 1975, surge em um povoado a notícia do CHUPA SANGUE. Na época já convivíamos com o medo da “MUIÉ CHORONA”, que sempre na sexta-feira a meia-noite saía nas veredas, na forma de uma mulher que carregava uma bacia na cabeça, um menino escanchado sobre ela. Essa mulher era perseguida por um cachorro negro, com olhos vermelhos, que tinha fogo em sua boca; de vez enquanto, ele mordia os calcanhares da mulher. Nesse momento, ela abria o berreiro, chorando, e quanto mais a pessoa corria mais ela se aproximava. Quando alguém ouvia seu choro longe, de repente a aparição estava bem próxima.

 Também nos atormentava a figura da “NUM-SE-PODE”, uma mulher que se encontrava à noite pelos caminhos escuros do CAL, à primeira vista era somente um bebê perdido, rapidamente ela já se tornava uma menina, e quando se olhasse novamente, ela continuava crescendo, crescendo e crescendo, até ficar gigante e cair sobre a pessoa. Havia também o lobisomem, que em noite de lua cheia quem tivesse cachorra parida podia se preparar que iria na madrugada receber a visita, e o lobisomem poderia de uma só vez comer todos os filhotes.

Naquela época, com tudo isso, o Chupa Sangue fez sua primeira vítima, porém, o que se sabe é que nunca se pode conhecer realmente quem foi a vítima, mas todos os dias aparecia alguém contatando que algum parente do seu fulano na noite anterior havia sido atacado pelo CHUPA SANGUE. Os relatos eram sempre os mesmos, dizia-se que a pessoa que andava pela noite era cegada por uma luz que, de repente, vinha de cima e a deixava encadeada; em seguida, uma espécie de rede era jogada do alto sobre a pessoa, que se enrolava toda, tentando escapar, mas cansada adormecia e quando era encontrada já estava sem uma gota de sangue. O nome sugestivo era CHUPA SANGUE, mentira ou verdade, esses acontecimentos eram o terror da época e ninguém queria mais sair à noite.

Certa vez, um senhor, que morava no Tatus e sempre gostava de por volta das 19:00 horas ou 19:30 sair de sua casa, que ficava próximo à antiga casa do seu CHICO ALCINO, e ir até o PORTO do TATUS tomar banho. Ele ia sempre sozinho e pelo caminho ia assoviando, pois era uma forma de espantar o medo, visto que antigamente havia poucas casas naquele caminho e o porto a noite era totalmente deserto.

Em um certo ponto do caminho, havia uma passagem sobre dois pés de cajueiro bem encorpados e, numa dessas suas idas ao rio tomar banho, alguns moleques, já quase rapazotes e sabendo de sua rotinha, preparam uma brincadeira que deu no que falar. Certa noite, já passava das dezenove horas quando lá vinha o protagonista dessa memória assoviando como quem tentava espantar o medo. Ao passar em baixo dos pés de cajueiro, lá do alto veio uma lanterna em seu rosto e em seguida uma rede, também lá do alto, foi jogada certeiramente em cima dele. O homem deu um grito de terror, e cai dali, cai daqui, gritado por SOCORRO e rolando no chão, até que conseguiu se desvencilhar da rede. Devido aos gritos dados por ele em direção a sua casa, o terror se espalhou ainda mais sobre o povoado.

No outro dia era manchete em os “pasquins” das fofoqueiras de plantão – “ontem à noite o CHUPA CABRA pegou seu LUIZ”, mas graças a DEUS ele conseguiu escapar. Muito tempo depois a história veio à tona, os dois rapazes, que agora não lembramos os nomes, haviam subido sobre as árvores e ficado esperando o seu alvo passar, no momento certo um jogou a luz da lanterna sobre ele e o outro abriu uma tarrafa sobre o pobre homem, tudo como era descrito pela imaginação do povo; essas pessoas nunca revelaram a verdade, caso contrário seriam homens mortos.

QUINTA MEMÓRIA

Era início de 1976, homens começam a abrir uma clareira vindo dos morros da Mariana em direção ao Porto dos Tatus. A notícia logo se espalhou, essa derrapada tinha um objetivo, espalhar sobre ela a rede elétrica, enfim, a energia estava chegando. Isso causou um grande alvoroço, pois diziam que era algo muito perigoso, os moleques escondidos das mães iam ver aqueles homens com roupas esquisitas e trepados naqueles postes puxando fios enormes, tudo era novidade. Quando terminaram as instalações das redes e a tão sonhada energia elétrica chegou, descobrimos que nem todo mundo poderia tê-la em sua casa, nessa época somente algumas famílias poderiam, ou seja, quem tinha dinheiro. Assim, poucas famílias do CAL, TATUS e no BAIXÃO puderam instalar energia em suas casas, pois ter luz elétrica era um privilégio e pouquíssimos desfrutavam dessa novidade.

 

SEXTA MEMÓRIA

Imagem ilustrativa


 

Com a chegada da luz elétrica, pouco tempo depois, no CAL, por intermédio de alguns moradores, a prefeitura de Parnaíba mandou instalar a primeira televisão pública para o povoado. Uma casinha foi construída onde cabia somente a televisão, uma espécie de cabine, havia uma janela com um balcão e uma porta ao lado, pela qual somente alguns moradores poderiam entrar e ligar a televisão, geralmente por volta das dezenove horas.

A cabine foi construída entre duas casas, onde hoje é casa do seu NILSON da NETE, e a casa do seu JUAREZ, onde atualmente mora a CHICA SUPRIANA. Lembro que ali, à noite, enchia de gente para ver essa novidade, era um ponto de encontro para os mais velhos, para o jovem que achava ali uma oportunidade para namorar, e para molecada brincar e correr.

Lembro também que na época o local era chamado de a praça da TELEVISÃO PÚBLICA. Mas essa TV causou tamanha discórdia, porque muita gente também se achava no direito de ligar e desligar a tal TELEVISÃO, e era um fofocaiada, era um disse me disse, um leva e traz; e a TV, Por fim, vivia mais no conserto do que em funcionamento. Certa vez, ela foi para o conserto e, infelizmente, nunca mais voltou, a CABINE dela ainda ficou lá por muito tempo.

 

SÉTIMA MEMÓRIA


imagem ilustrativa - A Rural

Sem a TELEVISÃO PÚBLICA e sem muitas novidades, a sensação da molecada era a RURAL do seu PACHECO, um homem de boas condições financeiras que morava no final do povoado TATUS. Na época havia comprado um carro que conseguia andar na areia, não necessitava de estrada, e ele usava esse carro para ir deixar e buscar suas filhas que estudavam em Parnaíba, não podemos esquecer a cor do carro, branco com azul.

Quando se ouvia o barulho do motor do carro, a meninada toda se alvoroçava, e ficava na espreita no lugar onde a terra era bem movediça e quando ela – a RURAL - passava nesse tipo de areia era o momento, saía menino de todo canto: de trás dos cajueiros, das moitas e corriam atrás do carro até alcançar e se pendurava em sua traseira, ficavam ali por um bom tempo, andando do lado de fora. Seu PACHECO e sua FAMÍLIA odiavam essa molecada. Recordo que ele tentava acelerar o carro para os meninos não o alcançar, mas era inútil, quando o carro passava em outro local com areia movediça ele era obrigado e reduzir a velocidade, essa era a hora de pular, e assim era todo o seu percurso. Seu Pacheco, depois de tudo isso, vinha falar com os pais da molecada, hora em que muita surra era aplicada, mas isso não dava em nada, no outro dia estávamos todos lá de novo e depois ainda ficávamos “mangando” daquele que não conseguia a tal “carona”.

 

OITAVA MEMÓRIA

Um ponto de encontro que marcou muito o povoado do CAL foi o poço público –instalado próximo à casa do seu CHICO VITALINO, onde hoje é o CLUBE DO MARRECO. Esse poço era uma espécie de chafariz, tinha uma bomba tipo mecânica, uma espécie do chamado carneiro, manuseava-se uma alavanca para cima e para baixo até que a água jorrasse. Homens e mulheres iam ao poço buscar água e, à noite, muita gente passava por lá, era um local cheio de encontros, sem muita confusão, mas com o passar do tempo o poço foi abandonado e ficou por lá durante muito tempo.

 

NONA MEMÓRIA

O ano era 1978, as máquinas aos poucos começaram a chegar em Morros da Mariana: tratores, mecânica, caçambas e muitos homens. Pronto, começaram os burburinhos, finalmente a tão esperada estrada ia começar a ser construída e as máquinas já foram logo trabalhando, o chão começou a ser literalmente rasgado, cajueiros e tantas outras árvores foram arrancadas. Homens, mulheres, crianças, meninos, velhos todos iam para a margem ver as máquinas trabalharem. Montanhas de resto de madeiras eram empilhados durante todo o percurso dos Morros aos Tatus. O povo carregava parte dessa madeira, o restante era colocada para ser queimada, foi uma revolução no povoado inteiro essa obra.

Quando estavam bem avançados os trabalhos, um dia pela manhã uma tragédia veio acontecer. Havia uma mulher conhecida por CHICA VAQUEIRA, que gostava de tomar umas, ela havia se embriagado e dormiu próximo ao canteiro de obras em que ficavam as máquinas; de manhã cedo, na saída do maquinário, ninguém havia visto a Chica Vaqueira e um dos tratores fatalmente passou sobre o seu corpo. Na época, os trabalhos ficaram paralisados por um bom tempo.

Outro fato que também mereceu destaque foi a do FORTE CAJUEIRO, a estrada já estava bem avançada e quase chegando no CAL, ali havia um cajueiro centenário e gigante. Na tentativa de derrubá-lo, um trator de esteira acabou fundindo seu motor, sem que nem abalasse as raízes da árvore centenária, foi pedido outro trator que, na tentativa, arrebentou a esteira e nada; solicitaram mais uma vez um novo trator e aí veio um turbo, digamos assim, que dessa vez o centenário foi ao chão, finalmente VENCIDO pelas máquinas.

 

DÉCIMA MEMÓRIA

Imagem ilustrativa


Finalmente chegamos na última memória desse “causo”. Em algumas casas já havia TELEVISÃO PARTICULAR, muitas famílias não tinham condições nem de colocar luz elétrica em casa, imagina uma televisão. Mas em outras famílias, em compensação, já havia televisão em preto e branco, pois a televisão chamada de “colorida” nem pensar. Então, à noite era aquela festa, muitas casas ficavam lotadas, vinha gente de todo lado assistir televisão, muitas eram até cordiais, já outras nem tanto.

Vinham homens, mulheres, crianças, rapazes, na hora da novela não podia dar um piu, se não no outro dia a mãe sabia e não podia ir mais. A casa do meu tio, o Véi Supriana, era uma dessas casas que tinha TV e vivia sempre cheia de gente. Quando terminava uma parte da novela vinha a propaganda, então a mulherada ficava comentando as cenas e o que poderia acontecer nas próximas partes a seguir.

Durante a novela das oito, todas as vezes em que terminava uma parte e entravam os comerciais, a primeira propaganda me chamava muito atenção e sempre era o mesmo comercial: uma mulher jovem muito bonita e bem vestida, de BLEIZER, com uma saia acima do joelho, vinha andando em uma sala bem grande e dizia assim: com esse novo “moldes” que eu estou usando - ela sentava numa cadeira atrás de uma mesa de vidro, aí só mostrava as pernas dela do joelho para baixo e a voz dela dizendo – Agora eu posso abrir, fechar e cruzar as pernas e não vaza nada. Eu achava aquilo interessante, mas ficava só na minha, caladinho. Até que um dia, de tanto ver e ouvir aquele comercial, não aguentei, a curiosidade foi maior. Na época, menino só podia sentar no chão, pois as cadeiras eram somente para os mais velhos; nessa noite de minha curiosidade, a casa estava lotada, eu sentadinho no chão com as chinelas havaianas na mão, até que entrou a bendita propaganda, todo mundo comentando a novela e quando terminou o comercial eu em voz alta perguntei: GENTE, UM MINUTO DA ATENÇAO DE VOCÊS, O QUE É E “PRA” QUÊ SERVE ESSE TAL DE MOLDES? Meu DEUS, o silêncio tomou conta geral da sala, podia se ouvir uma agulha cair e o canto do grilo, então, foi quando percebi que tinha acabado de fazer a maior besteira da minha vida, só fiz mais que depressa, levantar bater a poeira e achei rapidinho o caminho de casa.

imagem ilustrativa - Propaganda Absorvente Modess


No outro dia, eu ainda dormia quando a minha mãe bateu a mão no punho da minha rede e disse:

- Curumim saliente, sai dessa rede! Tu vai levar uma surra agora “pra” deixar de ser saliente.

Minha tia já tinha ido cedinho contar a ela da minha presepada e que ela quase morreu de tanta vergonha, era tradicional o jantar sair no máximo às 16 horas para, ao anoitecer, fechar a casa e ir para residência de alguém que tinha TV para assistir à novela da seis horas, das sete e a das oito horas; depois disso vinham os filmes, mas estes poucas eram as pessoas que assistiam, pois para muitos já era muito tarde, então, era hora de desligar a televisão, pois mesmo que não desligassem, quando era a meia noite saía tudo do ar, ficando apenas a lista na TV.

Enfim esses são alguns dos meus causos e memórias de minha infância no BAIRRO CAL.


ATT, João Batista Sales.                   

 

Ilha Grande – PI, 23 de Maio de 2021.

Carta Ilhagrandense.

Dos autores ao povo