2021 tem se mostrado um ano tão
cheio quanto seu antecessor, nós temos nos empenhado para o Carta continuar
com, pelo menos, duas postagens mensais e pedimos desculpas pelo sumiço. Em
meio a vários projetos pessoais e comuns dos membros da equipe, estamos organizando
as perdas e transtornos ainda vividos, então peço-lhes a compreensão.
Contudo, para não dizer que tudo são
males, informo a todos que temos um projeto no You Tube, no canal Carta Ilhagrandense, deixarei o link no final do
texto. Lá estão postadas: todas as lives; o Debate Político de 2020 completo; e
o projeto para a discussão de temas relevantes da sociedade, tendo como tema
inicial “Os Padrões de Beleza Feminina Atuais”. Assim, contamos com seu apoio
lá também. A equipe está engajada em um grupo de estudos chamado Filhos do
Delta, buscamos compreender o Delta e as relações existentes nesse emaranhado
de ilhas e aguardamos ansiosos o fruto do nosso empenho, então esteja conosco!
O texto de hoje já é um fruto suculento desse novo espaço. Unindo as gerações
mais distantes, o grupo faz despertar o entendimento que cada um tem da Ilha
(cidade) e das ilhas (delta).
O senhor João Batista Sales é
ilhagrandense, tem 52 anos e há 33 mora no Distrito Federal. Em nossos
encontros, sempre mostra a Ilha que ele conheceu e que até hoje guarda consigo.
Sugerimos ao Batista, a produção de um relato de vida, ou seja, que ele
contasse algumas de suas vivências nessas terras, e ele topou. Diz que seu
maior sonho é voltar a morar em Ilha Grande, nossa cidade hospitaleira que,
como uma mãe, saberá receber seu filho de volta.
Você até pode pular essa parte e ir
direto para as memórias do senhor Batista, mas acredito que uma pequena
introdução, dando algumas informações fundamentais sobre como era a Ilha,
principalmente para os leitores que talvez não conheçam nossa cidade, não fará
mal.
Na época das memórias, o território
que compreendemos como a cidade de Ilha Grande era apenas um salpico de casas
dividas em povoados: Tatus, Cal, Baixão, Morros da Mariana, Canto do Igarapé,
Labino e Barro Vermelho, são exemplos de comunidades que vingaram e
consagraram-se bairros após a emancipação política de 1994. Algumas comunidades
como Cutia e Cana Brava tinham, proporcional à época, números consideráveis de
habitantes. O fato é que o morador da Ilha era um produtor em potencial. Da
cana de açúcar ao arroz, da criação de gado ao extrativismos vegetal, logo, era
mais conveniente morar próximo à sua fonte de renda. Ocorreu que, com o
enfraquecimento desses mercados e com o crescimento da mobilidade urbana, as
famílias tenderam a migrar do extremo norte da Ilha para comunidades mais
centrais. Ainda em meados dos anos 90, as últimas famílias abandonaram a Cana
Brava; o Cutia, por sua vez, apresenta resquícios de ocupações de outrora, como é exemplo a moradia do senhor Pedro Militão.
Com exceção dos Morros da Mariana,
que nesse período já tinha expressivo número de habitantes, noticiado inclusive
em jornais, as casas que formavam os povoados eram distantes umas das outras,
separadas por matas de árvores nativas. Eram habitações de taipa, sem água
encanada e com luzes de lamparina; o piso era de areia branca, portas de
esteira de palha. As mães lavavam roupas no rio e nas lagoas, rodeadas de
crianças, enquanto os pais estavam nas roças com os filhos adolescente. Não
havia ruas, somente veredas, portanto, sem carros e com fluxo fluvial bem mais
utilizado para escoar a produção ao invés do entretenimento. Dito isso,
apresentamos a seguir os relatos de memória de João Batista. Boa apreciação!
MINHAS MEMÓRIAS DE INFÂNCIA
A década de 1970 foi marcante na
infância de todos aqueles que eram crianças nascidas e criadas em ILHA
GRANDE/PI. Estávamos descobrindo as curiosidades do mundo de nosso pequeno
povoado, muitas novidades começavam a chegar ali, duas são as mais marcantes: a
chegada da energia elétrica e a construção da tão esperada ESTRADA, mas vamos
falar disso no final da nossa conversa.
Falaremos especificamente de minha
comunidade, o CAL, cujas terras eram divididas entre as seguintes famílias: os
THÓMAS, representados na pessoa do senhor ESTENÍL; a família GALDINO,
representada na pessoa de Patriarca, o senhor FRANCISCO GALDINO (Chico
Galdindo); mais ao centro estava uma parte da família PEDRO, representado pelo
seu patriarca, o senhor MANUEL PEDRO; e já na divisa com o Tatus situavam-se as
terras dos VICENTES, representados pelo seu patriarca, o senhor JOSÉ VICENTE,
vulgo Zé Vicente.
Nessa época, os moradores que não
fossem parentes de primeiro ou segundo grau dessas famílias eram agregados. A
família dos SUPRIANAS, a qual eu faço parte, era agregada do senhor ZÉ VICENTE,
morávamos onde hoje os morros brancos já chegaram, à beira da estrada, ou seja,
na extrema do CAL com o TATUS.
Foi neste pedaço do CAL que passei boa parte de minha infância, o ano era 1974 e foi quando pela segunda vez, meu pai conhecido pela alcunha de ZÉ MARRECA viajou para tentar a sorte na construção da CAPITAL FEDERAL. Minha MÃE, grávida do terceiro filho, ficara mais uma vez sozinha e assim como ela, muitas mulheres que eram conhecidas como as VIÚVAS DE MARIDOS VIVOS; isso porque seus companheiros viajavam em sua maioria para BRASILIA, local a mais de dois mil e cinquentas quilômetros dali. Dessa forma, a vida que já não era nada fácil ficava ainda mais complicada. Fui testemunha de fatos marcantes que ficaram registrados em minha memória, e nesse texto vamos lembrar de dez acontecimentos ou memórias da minha infância.
PRIMEIRA MEMÓRIA
A escassez de alimentos era a pior
já vivida, em outras palavras, a fome. Com a saída dos maridos, muitas mulheres
formavam um laço familiar com outra, geralmente uma parente próxima, para
juntas amenizarem o sofrimento. Minha mãe, a dona FRANCISCA, fortaleceu esse
laço de amizade e familiar com minha tia CONCEIÇÃO, que também já era mãe de
duas meninas, mas com a sorte de não ter ficado grávida, pois seu marido, o
senhor VÉI SUPRIANA, também havia viajado. Juntas, trabalhavam de diárias na
ROÇA, sempre ao cair da tarde, já praticamente anoitecendo, minha mãe ia para
cozinha preparar o que tinha para ser o jantar daquele dia: quase sempre era um
mingau de arroz com farinha de puba ou um pirão de acará, que na maioria das
vezes era ainda a primeira refeição do dia.
Minha tia CEIÇÃO tinha como missão
levar as quatro crianças para o terreiro da casa, local onde havia uma areia
branquinha, a lua começava a se levantar rompendo as matas de cajueiros que
cercavam a casinha de taipa; e ali ela contava várias histórias e nós
viajávamos longe. Entretanto, eu voltava rapidinho das minhas viagens, pois a
barriga doía muito e, de vez enquanto, minha tia era interrompida com uma
pergunta: “Tia, vai demorar muito pra a gente comer?” Lembro-me de que, na
maioria das vezes, ela passava a mão nos olhos e, olhando em direção à porta da
casa, esperando algum sinal, dizia “logo logo vai sair” e continuava as
historinhas.
SEGUNDA
MEMÓRIA
O ano era 1973, aconteceu um fato
que marcou o pequeno povoado do CAL: o assassinato de um morador. Já era
tardezinha quando a notícia se espalhou, em uma briga de arma branca com o , seu algoz, esse senhor levou uma facada bem abaixo do peito,
golpe que acabou sendo fatal, este caiu em frente à casa do seu JOÃO ARMANDO.
Naquele momento, o pequeno povoado todo parou para testemunhar esse
acontecimento. O fato deixou uma viúva e mais quatro órfãs.
Até hoje lembro da real pobreza que
era naquele tempo, pois quando alguém vinha a óbito, uma porta da casa do
falecido era arrancada e usava-se quatro tamboretes, caso não houvesse,
pedia-se emprestado na redondeza e colocava-se essa porta sobre os quatro
tamboretes, um em cada canto. Sobre a porta estendia-se o corpo do defunto.
Durante a noite toda, o corpo era velado sob muita REZA, CACHAÇA, CAFÉ e já
pela manhã, às vezes, mas raramente, à tardezinha, os homens eram responsáveis
pelo cortejo do enterro: trazia-se uma madeira, sempre um caibro de mangue, de
três metros, amarrava-se a rede neste caibro, formando uma espécie de
balancinha, e o corpo era colocado dentro dessa rede. Dois homens, um na frente
e um outro atrás, carregavam a rede com o corpo, ruas a fora num cortejo de
pessoas cantado e rezando atrás do morto.
Chegando ao local onde se realizava
o sepultamento, o corpo era retirado da rede e enterrado somente com a roupa
que estava vestido, e a rede era devolvida aos seus familiares, que sempre
lavavam e a utilizavam novamente, tudo isso porque eram grandes as necessidades
financeiras. Assim sendo, na maioria das vezes, nem dinheiro para comprar um
caixão tinham, por isso era comum enterrar seus entes queridos diretamente na
terra; somente os abastados, os donos de terras ou grandes comerciantes,
poderiam ser velados e enterrados num caixão.
TERCEIRA
MEMÓRIA
Em janeiro de 1974, outro fato veio
marcar o povoado, a morte do senhor BENDITO PEDRO, o que marcou na verdade foi
a forma de como isso aconteceu. Segundo as lembranças, ele tinha extraído um
dente, no dia seguinte montou em seu cavalo e foi para o Cutia junto com o ÉDIL
GALDINO. Nos solavancos da montaria daquele dia, juntamente com o sol
escaldante e muito calor, uma temperatura acima de 40º, foi fatal. Lembro que
ainda em cima do cavalo ele começou a passar mal e sangrando muito, foi
colocado em baixo de uma árvore e o ÉDIL, sem saber o que fazer, deixou ele
sozinho nessa árvore e veio para o povoado muito distante em busca de SOCORRO.
Muita gente se mobilizou e foram em busca do senhor Bendito Pedro, mas ao
chegarem ao local, ele já estava sem vida, deixando uma viúva e três filhos,
além do sonho de trabalhar na construção da capital federal, pois sempre que
podia passava na casa do ZÉ MARRECA, meu pai, para confirmar uma viagem que
fariam juntos à BRASILIA.
QUARTA MEMÓRIA
O ano era 1975, surge em um povoado
a notícia do CHUPA SANGUE. Na época já convivíamos com o medo da “MUIÉ
CHORONA”, que sempre na sexta-feira a meia-noite saía nas veredas, na forma de
uma mulher que carregava uma bacia na cabeça, um menino escanchado sobre ela.
Essa mulher era perseguida por um cachorro negro, com olhos vermelhos, que
tinha fogo em sua boca; de vez enquanto, ele mordia os calcanhares da mulher.
Nesse momento, ela abria o berreiro, chorando, e quanto mais a pessoa corria
mais ela se aproximava. Quando alguém ouvia seu choro longe, de repente a
aparição estava bem próxima.
Também nos atormentava a figura da
“NUM-SE-PODE”, uma mulher que se encontrava à noite pelos caminhos escuros do
CAL, à primeira vista era somente um bebê perdido, rapidamente ela já se
tornava uma menina, e quando se olhasse novamente, ela continuava crescendo,
crescendo e crescendo, até ficar gigante e cair sobre a pessoa. Havia também o
lobisomem, que em noite de lua cheia quem tivesse cachorra parida podia se
preparar que iria na madrugada receber a visita, e o lobisomem poderia de uma
só vez comer todos os filhotes.
Naquela época, com tudo isso, o
Chupa Sangue fez sua primeira vítima, porém, o que se sabe é que nunca se pode
conhecer realmente quem foi a vítima, mas todos os dias aparecia alguém
contatando que algum parente do seu fulano na noite anterior havia sido atacado
pelo CHUPA SANGUE. Os relatos eram sempre os mesmos, dizia-se que a pessoa que
andava pela noite era cegada por uma luz que, de repente, vinha de cima e a
deixava encadeada; em seguida, uma espécie de rede era jogada do alto sobre a
pessoa, que se enrolava toda, tentando escapar, mas cansada adormecia e quando
era encontrada já estava sem uma gota de sangue. O nome sugestivo era CHUPA
SANGUE, mentira ou verdade, esses acontecimentos eram o terror da época e
ninguém queria mais sair à noite.
Certa vez, um senhor, que
morava no Tatus e sempre gostava de por volta das 19:00 horas ou 19:30 sair de
sua casa, que ficava próximo à antiga casa do seu CHICO ALCINO, e ir até o
PORTO do TATUS tomar banho. Ele ia sempre sozinho e pelo caminho ia assoviando,
pois era uma forma de espantar o medo, visto que antigamente havia poucas casas
naquele caminho e o porto a noite era totalmente deserto.
Em um certo ponto do caminho, havia
uma passagem sobre dois pés de cajueiro bem encorpados e, numa dessas suas idas
ao rio tomar banho, alguns moleques, já quase rapazotes e sabendo de sua
rotinha, preparam uma brincadeira que deu no que falar. Certa noite, já passava
das dezenove horas quando lá vinha o protagonista dessa memória assoviando como quem
tentava espantar o medo. Ao passar em baixo dos pés de cajueiro, lá do alto
veio uma lanterna em seu rosto e em seguida uma rede, também lá do alto, foi
jogada certeiramente em cima dele. O homem deu um grito de terror, e
cai dali, cai daqui, gritado por SOCORRO e rolando no chão, até que conseguiu
se desvencilhar da rede. Devido aos gritos dados por ele em direção a sua casa,
o terror se espalhou ainda mais sobre o povoado.
No outro dia era manchete em os
“pasquins” das fofoqueiras de plantão – “ontem à noite o CHUPA CABRA pegou seu
LUIZ”, mas graças a DEUS ele conseguiu escapar. Muito tempo depois a
história veio à tona, os dois rapazes, que agora não lembramos os nomes, haviam
subido sobre as árvores e ficado esperando o seu alvo passar, no momento
certo um jogou a luz da lanterna sobre ele e o outro abriu uma tarrafa sobre o
pobre homem, tudo como era descrito pela imaginação do povo; essas pessoas nunca
revelaram a verdade, caso contrário seriam homens mortos.
QUINTA
MEMÓRIA
Era início de 1976, homens começam a
abrir uma clareira vindo dos morros da Mariana em direção ao Porto dos Tatus. A
notícia logo se espalhou, essa derrapada tinha um objetivo, espalhar sobre ela
a rede elétrica, enfim, a energia estava chegando. Isso causou um grande
alvoroço, pois diziam que era algo muito perigoso, os moleques escondidos das
mães iam ver aqueles homens com roupas esquisitas e trepados naqueles postes
puxando fios enormes, tudo era novidade. Quando terminaram as instalações das
redes e a tão sonhada energia elétrica chegou, descobrimos que nem todo mundo
poderia tê-la em sua casa, nessa época somente algumas famílias poderiam, ou
seja, quem tinha dinheiro. Assim, poucas famílias do CAL, TATUS e no BAIXÃO
puderam instalar energia em suas casas, pois ter luz elétrica era um privilégio
e pouquíssimos desfrutavam dessa novidade.
SEXTA MEMÓRIA
Com a chegada da luz elétrica, pouco
tempo depois, no CAL, por intermédio de alguns moradores, a prefeitura de
Parnaíba mandou instalar a primeira televisão pública para o povoado. Uma
casinha foi construída onde cabia somente a televisão, uma espécie de cabine,
havia uma janela com um balcão e uma porta ao lado, pela qual somente alguns
moradores poderiam entrar e ligar a televisão, geralmente por volta das
dezenove horas.
A cabine foi construída entre duas
casas, onde hoje é casa do seu NILSON da NETE, e a casa do seu JUAREZ, onde
atualmente mora a CHICA SUPRIANA. Lembro que ali, à noite, enchia de gente para
ver essa novidade, era um ponto de encontro para os mais velhos, para o jovem
que achava ali uma oportunidade para namorar, e para molecada brincar e correr.
Lembro também que na época o local
era chamado de a praça da TELEVISÃO PÚBLICA. Mas essa TV causou tamanha
discórdia, porque muita gente também se achava no direito de ligar e desligar a
tal TELEVISÃO, e era um fofocaiada, era um disse me disse, um leva e traz; e a
TV, Por fim, vivia mais no conserto do que em funcionamento. Certa vez, ela foi
para o conserto e, infelizmente, nunca mais voltou, a CABINE dela ainda ficou
lá por muito tempo.
SÉTIMA
MEMÓRIA
Sem a TELEVISÃO PÚBLICA e sem muitas
novidades, a sensação da molecada era a RURAL do seu PACHECO, um homem de boas
condições financeiras que morava no final do povoado TATUS. Na época havia comprado
um carro que conseguia andar na areia, não necessitava de estrada, e ele usava
esse carro para ir deixar e buscar suas filhas que estudavam em Parnaíba, não
podemos esquecer a cor do carro, branco com azul.
Quando se ouvia o barulho do motor
do carro, a meninada toda se alvoroçava, e ficava na espreita no lugar onde a
terra era bem movediça e quando ela – a RURAL - passava nesse tipo de areia era
o momento, saía menino de todo canto: de trás dos cajueiros, das moitas e
corriam atrás do carro até alcançar e se pendurava em sua traseira, ficavam ali
por um bom tempo, andando do lado de fora. Seu PACHECO e sua FAMÍLIA odiavam
essa molecada. Recordo que ele tentava acelerar o carro para os meninos não o
alcançar, mas era inútil, quando o carro passava em outro local com areia
movediça ele era obrigado e reduzir a velocidade, essa era a hora de pular, e
assim era todo o seu percurso. Seu Pacheco, depois de tudo isso, vinha falar
com os pais da molecada, hora em que muita surra era aplicada, mas isso não dava
em nada, no outro dia estávamos todos lá de novo e depois ainda ficávamos
“mangando” daquele que não conseguia a tal “carona”.
OITAVA
MEMÓRIA
Um ponto de encontro que marcou
muito o povoado do CAL foi o poço público –instalado próximo à casa do seu CHICO
VITALINO, onde hoje é o CLUBE DO MARRECO. Esse poço era uma espécie de
chafariz, tinha uma bomba tipo mecânica, uma espécie do chamado carneiro,
manuseava-se uma alavanca para cima e para baixo até que a água jorrasse.
Homens e mulheres iam ao poço buscar água e, à noite, muita gente passava por
lá, era um local cheio de encontros, sem muita confusão, mas com o passar do
tempo o poço foi abandonado e ficou por lá durante muito tempo.
NONA MEMÓRIA
O ano era 1978, as máquinas aos
poucos começaram a chegar em Morros da Mariana: tratores, mecânica, caçambas e
muitos homens. Pronto, começaram os burburinhos, finalmente a tão esperada
estrada ia começar a ser construída e as máquinas já foram logo trabalhando, o
chão começou a ser literalmente rasgado, cajueiros e tantas outras árvores
foram arrancadas. Homens, mulheres, crianças, meninos, velhos todos iam para a
margem ver as máquinas trabalharem. Montanhas de resto de madeiras eram
empilhados durante todo o percurso dos Morros aos Tatus. O povo carregava parte
dessa madeira, o restante era colocada para ser queimada, foi uma revolução no
povoado inteiro essa obra.
Quando estavam bem avançados os
trabalhos, um dia pela manhã uma tragédia veio acontecer. Havia uma mulher
conhecida por CHICA VAQUEIRA, que gostava de tomar umas, ela havia se
embriagado e dormiu próximo ao canteiro de obras em que ficavam as máquinas; de
manhã cedo, na saída do maquinário, ninguém havia visto a Chica Vaqueira e um
dos tratores fatalmente passou sobre o seu corpo. Na época, os trabalhos
ficaram paralisados por um bom tempo.
Outro fato que também mereceu
destaque foi a do FORTE CAJUEIRO, a estrada já estava bem avançada e quase
chegando no CAL, ali havia um cajueiro centenário e gigante. Na tentativa de
derrubá-lo, um trator de esteira acabou fundindo seu motor, sem que nem
abalasse as raízes da árvore centenária, foi pedido outro trator que, na
tentativa, arrebentou a esteira e nada; solicitaram mais uma vez um novo trator
e aí veio um turbo, digamos assim, que dessa vez o centenário foi ao chão,
finalmente VENCIDO pelas máquinas.
DÉCIMA
MEMÓRIA
Finalmente chegamos na última
memória desse “causo”. Em algumas casas já havia TELEVISÃO PARTICULAR, muitas
famílias não tinham condições nem de colocar luz elétrica em casa, imagina uma
televisão. Mas em outras famílias, em compensação, já havia televisão em preto
e branco, pois a televisão chamada de “colorida” nem pensar. Então, à noite era
aquela festa, muitas casas ficavam lotadas, vinha gente de todo lado assistir
televisão, muitas eram até cordiais, já outras nem tanto.
Vinham homens, mulheres, crianças,
rapazes, na hora da novela não podia dar um piu, se não no outro dia a mãe
sabia e não podia ir mais. A casa do meu tio, o Véi Supriana, era uma dessas
casas que tinha TV e vivia sempre cheia de gente. Quando terminava uma parte da
novela vinha a propaganda, então a mulherada ficava comentando as cenas e o que
poderia acontecer nas próximas partes a seguir.
Durante a novela das oito, todas as
vezes em que terminava uma parte e entravam os comerciais, a primeira
propaganda me chamava muito atenção e sempre era o mesmo comercial: uma mulher
jovem muito bonita e bem vestida, de BLEIZER, com uma saia acima do joelho,
vinha andando em uma sala bem grande e dizia assim: com esse novo “moldes” que
eu estou usando - ela sentava numa cadeira atrás de uma mesa de vidro, aí só
mostrava as pernas dela do joelho para baixo e a voz dela dizendo – Agora eu
posso abrir, fechar e cruzar as pernas e não vaza nada. Eu achava aquilo
interessante, mas ficava só na minha, caladinho. Até que um dia, de tanto ver e
ouvir aquele comercial, não aguentei, a curiosidade foi maior. Na época, menino
só podia sentar no chão, pois as cadeiras eram somente para os mais velhos;
nessa noite de minha curiosidade, a casa estava lotada, eu sentadinho no chão
com as chinelas havaianas na mão, até que entrou a bendita propaganda, todo mundo
comentando a novela e quando terminou o comercial eu em voz alta perguntei:
GENTE, UM MINUTO DA ATENÇAO DE VOCÊS, O QUE É E “PRA” QUÊ SERVE ESSE TAL DE
MOLDES? Meu DEUS, o silêncio tomou conta geral da sala, podia se ouvir uma
agulha cair e o canto do grilo, então, foi quando percebi que tinha acabado de
fazer a maior besteira da minha vida, só fiz mais que depressa, levantar bater
a poeira e achei rapidinho o caminho de casa.
No outro dia, eu ainda dormia quando
a minha mãe bateu a mão no punho da minha rede e disse:
- Curumim saliente, sai dessa rede!
Tu vai levar uma surra agora “pra” deixar de ser saliente.
Minha tia já tinha ido cedinho
contar a ela da minha presepada e que ela quase morreu de tanta vergonha, era
tradicional o jantar sair no máximo às 16 horas para, ao anoitecer, fechar a
casa e ir para residência de alguém que tinha TV para assistir à novela da seis
horas, das sete e a das oito horas; depois disso vinham os filmes, mas estes
poucas eram as pessoas que assistiam, pois para muitos já era muito tarde,
então, era hora de desligar a televisão, pois mesmo que não desligassem, quando
era a meia noite saía tudo do ar, ficando apenas a lista na TV.
Enfim esses são alguns dos meus causos e memórias de minha infância no BAIRRO CAL.
Ilha Grande – PI, 23 de Maio de 2021.
Carta Ilhagrandense.
Dos autores ao povo