NA VOZ DE UM GRIÔ O
REGISTRO DA SABEDORIA POPULAR:
manifestações de
Patrimônio Cultural Imaterial em Ilha Grande do Piauí
José Marcelo Costa dos Santos
(Pesquisador ribeirinho do Delta
do Parnaíba)
Resumo
O presente artigo tece uma discussão sobre Patrimônio Cultural Imaterial,
dando ênfase à produção literária poética revelada nos traços de cultura
popular presentes no cordel Juninho e o cavalo assassino, de autoria do griô Zé
Santana, na cidade de Ilha Grande do Piauí. O objeto de investigação do artigo
é a análise desses traços descritivos, como parte da cultura imaterial do povo
desse município. Elegeu-se como objetivo do trabalho, analisar os referidos
traços culturais, presentes no cordel, como forma de revelar uma das tantas
joias da cultura imaterial de Ilha Grande do Piauí, propiciando o conhecimento
de aspectos da obra do griô Zé Santana. O estudo se desenvolveu por meio de uma
pesquisa de abordagem qualitativa, mediante um estudo documental, e mostrou que
a obra em questão pode ser considerada um elemento do patrimônio cultural
imaterial do citado município, uma vez que revela aspectos da tradição local e da
identidade cultural dessa comunidade. A importância da obra Juninho e o cavalo
assassino se insere na memória e na história oral dos habitantes desse lugar, mostrando
o griô Zé Santana como um mediador de cultura em Ilha Grande do Piauí.
PALAVRAS-CHAVE:
Cultura Popular. Ilha Grande do
Piauí. Juninho e o cavalo assassino. Zé Santana.
1 Introdução
Este texto foi desenvolvido durante uma experiência de
formação no curso de Mestrado em Artes, Patrimônio e Museologia pela
Universidade Federal do Piauí, Campus
Ministro Reis Veloso, em 2015, sob a orientação da Prof.ª Dra. Paula Maria de
Aristides Oliveira Molinari. O texto original foi apresentado e publicado no Anais do II Congresso de Educação e
Afrodescendência – CONGEAfro/UFPI, 2015.
Atualmente, com o entendimento da relação de
significação do conceito de material e de imaterial, concebem-se como
patrimônios não apenas as peças de acervo, de valor material, mas as
manifestações do Patrimônio Imaterial, que abrange desde os fazeres e os
dizeres representativos de uma cultura, até as demais formas de construção
artística das comunidades (oralidade, cultura, literatura, etc.). Neste âmbito
tem-se em evidência a sabedoria popular, a arte do povo.
Na
cidade de Ilha Grande do Piauí, verificam-se fortes manifestações de cultura
popular, merecendo destaque o morador Raimundo José do Nascimento – o griô Zé
Santana. Poeta, compositor, cantor, declamador, cordelista, repentista e
artesão, esse cidadão manifesta sua arte por meio de rodas de brincadeira de
boi (bumba-meu-boi) locais, bem como através de suas canções e poemas diversos.
É pescador e agricultor no território do Delta do Parnaíba, atuando também como
vigilante em escolas da rede municipal de Ilha Grande do Piauí.
Suas
atividades na área da cultura popular fazem deste ribeirinho um “griô”,
portanto, um mestre do povo (PACHECO, 2006), merecendo ênfase, principalmente
nos poemas, a sensibilidade com a qual descreve as vicissitudes do habitar nas
terras de Ilha Grande. Neste segmento é válido ressaltar o poema “Juninho e o cavalo assassino”, um cordel
baseado em um evento trágico que marcou a vida da população local.
Com
o intuito de apresentar aspectos do legado cultural do griô Zé Santana, o
presente artigo tece uma primeira leitura sobre esse cordel, para apresentar um
episódio ocorrido no povoado Cal, atualmente bairro da cidade de Ilha Grande do
Piauí, na década de 1990, que ainda hoje é lembrado pelos moradores dessa
comunidade.
O
objeto de investigação do artigo é a análise dos “traços descritivos da cultura
popular ilhagrandense presentes no cordel Juninho
e o cavalo assassino, como parte da cultura imaterial do povo desse
município”. O estudo buscou responder a seguinte questão norteadora: Quais
traços descritivos da cultura popular ilhagrandense estão presentes no cordel Juninho
e o cavalo assassino?
Para
tanto, elegeu-se como objetivo do trabalho analisar os referidos traços
culturais, presentes no cordel, como forma de revelar uma das tantas joias da
cultura imaterial de Ilha Grande do Piauí, propiciando o conhecimento de
aspectos da obra do griô Zé Santana. Este estudo teve uma abordagem qualitativa
(SEVERINO, 2007) e foi desenvolvido com base em um estudo documental, em que o
conteúdo investigado se tratou do cordel citado acima.
A
análise documental compreende a identificação, verificação ou apreciação de
documentos, com objetivo específico sendo, portanto, vedado ao pesquisador
alterar ou modificar a fonte analisada (MOREIRA, 2005). O documento em
evidência é o cordel “Juninho e o cavalo assassino”.
Esta
obra foi cedida pelo griô Zé Santana, o qual concedeu a autorização para que o
texto fosse mencionado e analisado neste estudo. A técnica consistiu numa
apreciação do cordel em termos de aspectos históricos, linguísticos, literários
e de referência ao conceito de Patrimônio Cultural Imaterial.
2 Entendendo Patrimônio Cultural Imaterial
A arte como manifestação da cultura popular apresenta
aspectos peculiares em relação aos saberes e fazeres de uma comunidade. Compreende desde esculturas,
objetos de valor histórico, monumentos, estruturas arquitetônicas às formas de produção voltadas à oralidade. Tudo isso
forma o patrimônio de um povo, seja de natureza material, ou de natureza
imaterial (CARVALHO, 2011). Assim, as manifestações de cultura devem se
constituir como um espaço de interação de saberes e conhecimentos que se renovam e se
ampliam constantemente.
Neste aspecto, cabe referenciar a prática do griô Zé Santana,
que busca construir sua identidade cultural através de obras que mostram traços
da cultura da cidade de Ilha Grande do Piauí, como o cordel “Juninho e o cavalo assassino”, no qual
aspectos de vivências e memórias da população da referida cidade são descritos,
numa atmosfera poética que possibilita a compreensão do cenário cultural desses
moradores nos anos de 1990. Salienta-se que memória é aqui evidenciada como uma
atividade sensorial que diz respeito ao patrimônio (herança cultural) no seio
de uma comunidade, ou seja:
A memória está diretamente ligada ao patrimônio de um povo,
pois gera, a partir da cultura, tomada em manifestações naturais, materiais, um
ponto de referência de sua identidade e as fontes de sua inspiração. Assim, o
sofrimento de um povo pode ser evidenciado a partir das perdas coletivas a que
se submete. Os elementos de uma cultura [...] servem de alças, brasões e
insígnias importantes na construção de uma identidade de pertença a um lugar, a
uma gente, a uma cultura, enfim. (CARNEIRO, 2006, p. 20).
Nesse ensejo, pensar o caráter cultural de um povo é pensá-lo
em sua dinâmica de criação e manifestação à luz das raízes materiais e
materiais dessa comunidade, que deve sentir-se parte e detentora de seu próprio
patrimônio. A partir desses enfoques é possível aferir que, sendo o patrimônio
um recurso essencial, é preciso que se construa um entendimento coerente sobre
o mesmo, de modo a compreender quais as suas principais implicações e o que
estas representam para o desenvolvimento e construção de uma identidade
cultural em determinada região.
Obras como “Juninho e o cavalo assassino” podem ser
instrumentos nesse processo, por isso a importância de sua salvaguarda como patrimônio
cultural, já que a própria história do homem que a produziu já o constitui como
um mestre do povo, tornando-se assim conveniente o uso do termo griô para
caracterizar o morador Zé Santana.
A palavra griô, ou griot, é de origem africana, mas foi incorporada ao português
através do idioma francês. A exressão “griô” é uma forma abrasileirada proposta
pelo projeto Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô, de Lençóis-BA. Pacheco (2006,
p. 45), com base nos estudos de Amadou Hampâté Bâ (1901-1991, escritor malinês,
mestre da tradição oral africana) faz a seguinte caracterização sobre o termo
em questão:
Segundo Hampâté Bâ, nas línguas e
dialetos da região sul do Saara, noroeste da África, na tradição oral dos
grupos étnicos Bambaras e Fulas na região do Mali, de onde se originam os
griôs, eles têm diversos nomes e funções sociais, como por exemplo, em Bambara:
Diélis, que significa sangue, uma analogia com que circula no organismo vivo.
Eles são genealogistas, contadores de histórias, músicos/poetas populares,
importantes agentes de cultura.
O entendimento do que possa ser
considerado um griô deve partir da ideia de que essa figura emblemática é um
representante de sua própria cultura, assim reconhecido dentro de sua
comunidade, como é exemplo Zé Santana, que possui uma identidade cultural em
Ilha Grande do Piauí e seu cordel “Juninho e o cavalo assassino” ilustra seu
perfil de griô no seio da sociedade local, logo, uma obra que deve ser
considerada elemento do patrimônio ilhagrandense.
Considerando o cenário da referida
cidade, percebe-se que faltam ações voltadas à gestão do patrimônio, com vias
ao desenvolvimento. Tais ações, no caso do griô Zé Santana, representariam a
possibilidade de valorização de seu legado, por meio da salvaguarda de suas
obras como patrimônio cultural imaterial do município, concebendo que a cultura
viva da população deve ser valorizada, uma vez que trata-se da herança do povo,
aspecto essencial na construção de sua identidade cultural – patrimônio.
A palavra patrimônio vem do latim
patrimonium, que quer dizer “1. Herança paterna. 2. Bens de família. 3. Riquesa. 4. Os bens materiais ou não, duma
pessoa ou empresa”. (FERREIRA, 2001, p. 555). O patrimônio compreende o legado
construído durante a história de uma comunidade e repassado para seus
descendentes ao longo das gerações.
De acordo com Varine (2013), para que se constitua patrimônio,
no entanto, é preciso que o objeto, ou a expressão, seja reconhecido/a e
concebido/a pelos membros da comunidade que o/a detém. O povo precisa ser
consciente dessa riqueza, ou seja, é necessário que o patrimônio tenha o
reconhecimento por parte dos moradores, que devem concebê-lo como seu, pois de
outra forma ele não desempenhará o seu papel.
O patrimônio é o DNA do território e da comunidade [...] Ele
é ao mesmo tempo o reflexo da evolução anterior dessa comunidade. E é, enfim, suscetível
de se transformar por contribuições sucessivas vindas do interior
(contribuições endógenas) e do exterior (contribuições exógenas). Como o DNA é
a carteira de identidade do indivíduo que o associa à sua linhagem inteira, do
mesmo modo o patrimônio é a carteira de identidade da comunidade atual ligada a
uma continuidade sem limites. (VARINE, 2013, p. 45).
Dessa forma, o patrimônio tende a ser
elemento de grande importância para toda sociedade, seja ele de ordem material
ou imaterial. Percebe-se que comumente, no que concerne ao museu, consideram-se
patrimônios apenas os objetos, as esculturas e os monumentos, pertencentes a
determinado território e que são expostos ao público, todavia, na atualidade,
vislumbram-se também os ícones representativos de outra forma de patrimônio: não palpável, ou não tangível, apenas manifestado na
dinâmica dos fazeres e dos saberes de determinados indivíduos.
Trata-se do Patrimônio Cultural
Imaterial que, segundo o texto base da convenção de 2003 para a salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial, constitui:
[...] as práticas, representações,
expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos,
artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os
grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de
seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite
de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em
função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história,
gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para
promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (UNESCO,
2003, p. 5).
O cordel “Juninho e o cavalo assassino”
se enquadra nesta forma de patrimônio, aqui tratado também como “PCI”, pois é
representativo da memória local, inspirado sob um fazer artístico de tradição
oral (cordel), captado por um morador que possui a habilidade de contar
histórias por meio da seleção e organização de falas, expressas pela oralidade
(declamações, cantorias) ou por escritas poéticas.
Convém ressaltar que é possível agrupar o Patrimônio Cultural
Imaterial em quatro categorias principais, identificadas por Giovanni Pinna (2008),
museólogo italiano, e complementadas por Hildegard Vieregg (2009), às quais
foram agrupadas em Carvalho (2011, p. 124):
A primeira categoria diz respeito ao PCI
que está associado aos objetos representativos e relacionados com uma
manifestação cultural de uma comunidade (costumes, rituais, folclore, etc.); a
segunda categoria refere-se ao PCI que não tem forma material (língua,
tradição oral, memória, música de improviso, dança, etc.). A terceira é a categoria que tem a ver com os
significados simbólicos do patrimônio imaterial, ou seja, o significado de cada
objeto em função da sua história e das várias interpretações a que foi sujeito.
A quarta categoria inclui, de certo modo, a história oral como veículo da memória e identidade, compreendendo o PCI de
caráter positivo, mas também o negativo.
Percebe-se nesta descrição a diversidade
em torno do que se configura como Patrimônio Cultural Imaterial, entretanto, a
gestão do PCI continua sendo um processo árduo e que divide opiniões. Tal
disparidade se acentua, conforme postula Carvalho (2013, p. 113), devido ao
fato de que “preservar, documentar e apresentar o PCI não é uma tarefa fácil e acarreta maior exigência aos profissionais de museus
que, de uma forma geral, não estão preparados para isso, nem que seja pela
falta de competências específicas”.
Varine (2013), por sua vez, assevera que
o patrimônio que não apresenta registro de tombamento, não foi identificado em
catálogos, ou não se vale de inventário não é muito visível na sociedade, fato que
intensifica a complexidade em tratar essa categoria como instituição física, ou
mesmo como representação na comunidade.
Ainda assim, sendo tangível ou não tangível, o patrimônio faz
parte da história da humanidade e suas marcas refletem a ação do homem, como responsável
pela formação e pela construção de bens, desde monumentos e estruturas
arquitetônicas às manifestações de cultura, no âmbito da música, da dança, do
ritual, enfim, das linguagens.
3 Juninho e o cavalo assassino
Raimundo José do Nascimento, o Zé Santana, é natural de Ilha Grande do Piauí, município que abrange uma área de 121,96 km2, e apresenta os
seguintes limites: ao norte, o oceano Atlântico; ao sul, o município de Parnaíba; a leste, Parnaíba e o oceano Atlântico; e a oeste, o estado do Maranhão (AGUIAR, 2004).
Esta cidade foi criada pela Lei nº
4.680, de 26 de janeiro de 1994, sendo desmembrada do município de Parnaíba. Em relação às manifestações culturais, tem-se a prática das músicas de repentes e/ou das toadas, os cordéis,
as cantigas das “pastorinhas” e a música popular. Neste cenário, Zé Santana pode ser considerado um
destaque: desde a adolescência esteve envolvido em atividades ligadas à
cultura, principalmente participando como líder de grupos de brincadeira de boi.
Figura 01: Zé Santana em atividade na brincadeira de boi
(década de 1990)
Fonte: Acervo particular do griô
Este griô participou de festivais de poemas e
músicas populares e teve uma de suas composições incluída em uma coletânea
organizada por um grupo religioso da localidade. Compôs letras e dedilhou canções (Zé Santana
cria suas melodias por meio de assobios, ou seja, vai assobiando e encontrando
os tons mais adequados para cada composição) que retratam o caranguejo uçá, as
pastorinhas, o Delta do Parnaíba, dentre outras formas de referências
culturais. Referências que são tratadas aqui como:
[...] as artes, os ofícios, as formas de
expressão e os modos de fazer. São as festas e os lugares a que a memória e a
vida social atribuem sentido diferenciado: são as consideradas mais belas, são
as mais lembradas, as mais queridas. São fatos, atividades e objetos que
mobilizam a gente mais próxima e que reaproximam os que estão longe, para que
se reviva o sentimento de participar e de pertencer a um grupo, de possuir um
lugar. Em suma, referências são
objetos, práticas e lugares apropriados pela cultura na construção de sentidos
de identidade, são o que popularmente se chama de raiz de uma cultura. (BRASIL, 2000, p. 29).
Representar sua cultura por meio de sua arte é o que Zé
Santana faz, tendo em vista que há décadas dedica-se à composição de toadas, de músicas populares, bem como de poemas
sobre elementos característicos do território de Ilha Grande. Recentemente, gravou um CD artesanal, no qual as
músicas se assemelham em muito aos ritos do repente e das toadas.
O griô distribuiu cópias pela cidade,
mas nem mesmo nas rádios locais suas melodias foram difundidas, retrato do
descaso com que é tratado o patrimônio cultural no país. Não há um mecanismo de gestão para estas atividades, fator
ambíguo se levado em consideração o que reza a Constituição Federal sobre a Gestão
do Patrimônio Cultural.
Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em
regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um
processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas
e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade, tendo por
objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício
dos direitos culturais - Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012.
(BRASIL, 2012, s/p).
Segundo o inciso III deste artigo, é
dever do Sistema Nacional de Cultura, em parceria com as representações
estaduais e municipais, fomentarem a produção, a difusão e a circulação de
conhecimento e de bens culturais no país. Varine (2013) enfatiza a necessidade
da gestão do patrimônio, para que permaneça e seja concebido como bem
cultural do povo, pois uma cultura, ainda que rica e diversificada, se não for
devidamente mediada, tende a se extinguir. Por isso o autor chama a atenção
para a necessidade de ações para a gestão desse patrimônio.
Como griô, Zé Santana tem como uma das maiores
reperesentações entre o povo, o cordel sobre a morte prematura de um garoto
conhecido pelos populares como “Juninho”. Trata-se de uma composição poética de 41 estrofes e 246 versos, organizados em sextilhas, com rimas
irregulares.
O poema “Juninho e o cavalo assassino”
reflete a criatividade do autor que, mesmo desconsiderando conceitos teóricos de métrica e de rimas poéticas, compôs suas estrofes por meio de rimas
interpoladas e encadeadas em diferentes posições, trazendo ritmo e musicalidade
aos versos.
Juninho e o cavalo assassino
(1) Oh Virgem Mãe Poderosa
Do Santo e Eterno Divino
Dai-me força e veia poética
Para o meu raciocínio
Pra contar a história de Júnior
E do cavalo assassino.
(2) No ano Noventa e Três
A 24 de dezembro
No povoado do Cal
Deu-se um caso estupendo
D`um cavalo e um menino...
Vou ver se ainda me lembro.
(3) Eu vou contar a história...
Preste atenção eleitor
No dia do acontecido
Até a Terra chorou
Com pena da criancinha
Que o cavalo matou.
t(4) Júnior era seu nome
Pela pia batismal
Era querido de todos
Lá na região do Cal
Com cinco anos de idade
Gostava de animal.
(5) Cada ser humano
Ao nascer traz um destino
Um nasce pra morrer velho
Outro morre menino
Preste atenção eleitor
A morte deste menino
(6) Um dia de sexta-feira
Antes do meio-dia
Foi à casa da madrinha
Com a maior alegria
Pedir para banhar o cavalo
Era o que ele queria
(7) A madrinha disse está certo
Vá o cavalo banhar
Mas você vá com cuidado
Neles não podes montar
E por favor não demore
Venha para almoçar.
(8) A criancinha saiu
Para cumprir seu destino
Foi em direção ao rio
Com pouco raciocínio
Sem saber que o cavalo
Era o seu assassino
(9) Chegou na beira do rio
Quando o cavalo parou
Júnior pegou o cabresto
No bracinho colocou
Acolheu a corda no braço
Dentro d`água mergulhou.
(10) O cavalo Asa Branca
Dentro das águas nadou
Quando topou em terra
Ele pode se espantar
E nesta hora Juninho
Não pode se desatar.
(11) Juninho começou a chorar
Naquela grande agonia
Se valendo de Jesus
Da Santa Virgem Maria
Quanto mais ele chorava
Mais o cavalo corria
(12) Asa Branca corria
Como um monstro endiabrado...
O Juninho quase morto
Sendo por ele arrastado
O caminho estava seco
De sangue ficou molhado
(13) O cavalo deixou a terra
E seguiu no carroçal
Correndo muito assanhado
Aquele bruto animal
Arrastando aquela criança
Por cima de pedra e pau.
(14) Três homens entram na frente
Do Asa Branca assanhado
Pra defender a criança
Mas foi triste o resultado
Pois o corpo de Juninho
Estava todo quebrado
(15) O cavalo encantuado
Ali por três cidadãos
Encatuado na cerca
Bufando como um dragão
Juninho ainda
Só batia o coração
(16) O vaqueiro Antônio Hora
Que estava no local
Pegou o corpo de Juninho
Levou para o hospital
Mas antes da cirurgia
Chegou sua hora final.
(17) Então o vaqueiro voltou
Com o corpo do menino
O povo todo esperava
Com o maior desatino
As lágrimas banhavam o chão
A igreja tocava o sino.
(18) Quando correu a notícia
Que Juninho morreu
A comunidade do Cal
Com isso se entristeceu
Por ser o caso mais triste
Que aqui aconteceu.
(19) Na hora do velório
Foi grande a lamentação
O padrinho de Juninho
Chorou sem consolação
Vendo os amiguinhos dele
Ali perto do caixão
(20) Os avós dele diziam
Deus há de ter fazer jus
Os anjos estão contigo
Rodeados de luz
Porque você foi um mártir
Na presença de Jesus.
(21) Levaram o caixão de Juninho
Todo enfeitado de flor
A juventude rezando
Com o coração cheio de dor
A igreja bradou o sino
Os anjos cantavam em louvor.
(22) Aqui deixamos Juninho
Com o corpo sepultado
A alma com o rei da Glória
Dos anjos acompanhados
Pra falar em Asa Branca
O cavalo condenado.
(23) O cavalo Asa Branca
O dono quis matar
Pois matar tinha sentido
Ele achou melhor soltar
Deu carta de alforria
Pra ele perambular...
(24) Depois dos 7 dias
Que menino se enterrou
O padrinho de Juninho
O seu cavalo soltou
Ele foi direto ao rio
Cheirou as águas e voltou.
(25) D`água não quis beber
Voltou na mesma pisada
Foi ao portão da fazenda
Se despedir da morada
Deu um relincho tão forte
Que estremeceu a manada.
(26) Naquele mesmo momento
O cavalo foi embora
Deixou tristeza e saudade
E saiu de mundo a fora
Foi com destino a outro pasto
Só andava as zero hora
(27) Quando o cavalo partiu
O dono triste ficou
Fechou a estribaria
Outro nunca mais comprou
Por lembrar-se de Juninho
Que Asa Branca matou
(28) No dia da vaquejada
Ele começa a pensar
No seu cavalo Asa Branca
Que não pode mais montar
Pra derrubar touro bravo
Tirar emprimeiro lugar.
(29) É triste a situação
Do desse cavalo
Pensando no seu afilhado
Porque era seu amado
Pensava no Asa Branca
Que corria atrás de gado.
(30) Todo 23 de junho
Tem uma grande animação
Na fazenda Cutia
Na pega do barbatão
O cavalo Asa Branca
Era sempre campeão.
(31) Já estava com três anos
Aquele triste acontecido
A juventude lembrava-se
Do Juninho falecido
E do cavalo Asa Branca
Nunca mais aparecido.
(32) Já dentro dos anos
Que comentava a história
Um dia foi campear
O vaqueiro Antônio Hora
Avistou Asa Branca
Em cima das onze horas.
(33) Ele estava em uma sombra
Começando a cochilar
Quando ele pressentiu
Um alguém perto a pisar
Era o vaqueiro Antônio Hora
Que vinha se aproximar...
(34) O vaqueiro aproximou-se
O cavalo não fez ação
Estava fraco sem coragem
Naquele vasto sertão
Magro, com as crinas grandes
Que quase arrastava no chão.
(35) O cavalo despertou
Daquele pequeno sono
Como quem diz ao vaqueiro
Dá notícia pro meu dono
Que está com 4 anos
Que estou no abandono
(36) O vaqueiro veio embora
Com uma dor no coração
Por ter visto Asa Branca
Naquela situação
Magro, sujo e desprezado
Naquele seco sertão.
(37) Quando o vaqueiro chegou
Foi ao patrão contar
Que tinha visto Asa Branca
Magrinho pra se acabar
Patrão eu estou lhe pedindo
Deixe o cavalo eu ir buscar.
(38) O patrão disse está certo
De mim terá seu cartaz
Eu quero ver Asa Branca
Que o Júnior eu não vejo mais
Até gente Deus perdoa
Que dirá os animais.
(39) Asa Branca voltou
Para sua estribaria...
O Juninho não volta mais
Está com a Virgem Maria
Rezando no céu por nós
Toda noite e todo dia.
(40) Toda véspera de Natal
Esse caso é lembrado...
Aquela comunidade
Não esquece o passado
Lembra-se de Juninho
Que foi martirizado.
(41) Aqui termino a história
Do caso que foi passado
A história de Juninho
Que morreu martirizado
Pelo cavalo Asa Branca
Aquele monstro assombrado.
Figura 02: Porto do bairro Cal - Ilha Grande - PI
Fonte: Acervo particular de Jorge Cruz
As estrofes acima retratam o martírio de
Juninho. Nos povoados da região, quando este cordel era declamado pelo autor, quem
não presenciou a tragédia tinha nítida ideia de como ocorreu e quem foi
testemunha, emocionava-se ao relembrar o fato. Zé Santana transporta para as
letras a carga de emoção e de sentimentalismo que a morte do garoto representou
para os moradores do povoado Cal e para a população do entorno.
A tragédia ocorrida com Juninho
trouxe um sentimento de luto e consternação. Os moradores se conheciam,
famílias tinham parentescos com a criança, Juninho estudava na Unidade Escolar
Menino Deus, no Cal, onde era amigo do autor deste artigo, que ainda se
emociona ao ler o cordel e relembrar o episódio trágico. Essas relações
intensificaram ainda mais a atmosfera fúnebre daquela fatídica tarde em que os
ribeirinhos choraram a dor da partida desse menino.
Fazendo uso de sua habilidade artística,
Zé Santana transformou a narrativa do episódio em um conjunto de construções
poéticas, que passam a mensagem e se fazem entendíveis para todos os grupos de
populares da região. O griô em questão fez uso, ainda que inconscientemente, do
que Roman Jakobson, linguista norte-americano, identifica como funções da
linguagem, às quais são apreciadas em Kato (2004) e em Vanoye (2003).
No caso do poema, há evidência das
funções referencial, emotiva e poética. A primeira se revela no fato de que a mensagem passada no
poema é facilmente entendida pelo interlocutor, situando-o no tempo, espaço e
atmosfera em que acontece o fato; a segunda é evidenciada pela ação do eu poético
(a voz que se apresenta nos versos das estrofes do poema) numa atmosfera de
subjetividade que prende o leitor ou o ouvinte no enredo da obra; e a terceira
se dá, dentre outros aspectos, pela composição do poema, na escolha dos versos
e na combinação dos mesmos, que produzem um efeito de musicalidade que facilita
o entendimento (VANOYE, 2003).
Com estas propriedades, a obra “Juninho
e o cavalo assassino” se tornou popular e seu autor conhecido pelos moradores
da comunidade, o que a torna um elemento de patrimônio cultural imaterial para
cidade de Ilha Grande do Piauí, tendo em vista que elucida a tradição da
contagem de história, no caso uma história verossímil, real, de modo criativo e
atraente ao ouvinte, estabelecendo relação entre a comunidade e sua própria tradição,
por meio de um processo de observação,
registro, construção e apropriação.
O tipo de discurso expresso nos versos
que compõem as estrofes do cordel se configura em um processo semiótico
discursivo, que contempla a relação do conteúdo do texto com a sociedade e a
sua própria história de vida (BARROS, 2008), isto é, o cordel (texto poético)
se constitui em uma organização de versos os quais produzem sentido e relação
com um objeto de significação do leitor, ou do ouvinte (uma tragédia local) que
lê, ouve e compreende o papel dos sujeitos envolvidos: a ação sofrida pelo
protagonista (o menino Juninho) e o ato exercido pelo antagonista (o cavalo Asa
Branca).
Trata-se de um discurso, expresso por um
eu poético (a voz que se manifesta nos versos do cordel) saudosista, que revela
traços da cultura local. O primeiro exemplo é a relação com o rio: como o
próprio nome enuncia (Ilha Grande), trata-se da maior ilha do território do
Delta do Rio Parnaíba e uma das três que pertencem ao Estado do Piauí (AGUIAR,
2004).
Para os moradores desse território, o
rio representa a base da sobrevivência, pois todos os dias saem em suas canoas,
ou em chalanas, e vão explorar as riquezas do Delta: a pesca, a cata do
caranguejo, do marisco, bem como a agricultura, tendo como base o cultivo do
arroz e do feijão. E ainda, na atualidade, a atividade turística (passeios
pelos rios e igarapés) ganha força, por meio da qual muitos ilhagrandenses
conseguem sua renda familiar.
No cordel, a cena do início do ocorrido
(estrofes 06, 07, 09 e 10) com o garoto Juninho mostra a relação estreita do
povo ilhagrandense com o fluvial: o costume de usar o rio para deleite em suas
águas e para a limpeza e alimentação dos animais, fatores característicos da
comundades que se formam à margem de riachos e/ou igarapés.
O segundo traço é a religiosidade
(estrofe 01,11, 22 e 38), muito comum na tradição popular do território. A
questão do credo é disseminada desde os primeiros anos da infância e na década
em que ocorrera o fato (anos 90 do século XX), havia uma forte influência dos
ritos e da filosofia da Igreja Católica no povoado Cal e em suas adjacências: romarias
no mês de maio, procissões de santos, dentre outras.
Outra questão que merece destaque é visão poética do autor, tendo em vista que retrata o flagelo de Juninho e sua
fragilidade em relação ao seu algoz: o cavalo Asa Branca. No entanto, a partir
da vigésima quinta estrofe, o poema retrata o outro lado da história, o destino
do cavalo que, condenado por todos, foi abandonado para morrer.
Zé Santana, agora fazendo uso de um eu poético
ora indignado, ora saudoso, ora piedoso, fala do sofrimento do animal, que fora
encontrado tempos após a tragédia da morte de Juninho, pelo mesmo
vaqueiro que o freara durante o ocorrido. Vale ressaltar que não se tem em registro,
considerando a análise do cordel, se o suposto reencontro entre cavalo e
vaqueiro foi real ou se é fruto da imaginação criativa do autor em seu processo
de inspiração poética.
Fato é que nesta parte do poema, mais um
traço representativo da cultural ilhagrandense é percebida: a tradição das
vaquejadas na Fazenda Cutia, local destinado à pecuária extensiva, onde muitos pequenos
criadores cultivam seus rebanhos. No cenário dessa grande fazenda, vários
repentes foram criados, muitas toadas foram inspiradas, tecidas pela
criatividade de griôs, como é o caso de Zé Santana.
É também no território do Cutia que se
desenvolvem a cata da castanha de caju e a do murici, produtos que complementam
a receita econômica de muitas famílias ribeirinhas até os dias atuais. Além
disso, situa-se nas extensões da Fazenda Cutia grandes lagoas como o Tanque, o
Poço, a Lagoa Grande, o Mandi, dentre outras, nas quais ocorre a pesca
artesanal desenvolvida pelos moradores da região.
Identifica-se ainda, como um traço
cultural no cordel, o costume de badalar o sino durante os cortejos ou vigílias
fúnebres.
O ritual sonoro se traduz em mensagem de pesar, de tristeza pela perda
anunciada, o que torna aflorada a sensibilidade e a emoção dos moradores que
acompanham essas cerimônias.
Nesse ensejo, torna-se perceptível a importância da obra “Juninho e o cavalo assassino” para o PCI
da cidade, uma vez que o patrimônio e a arte que neles se inserem fazem parte
da memória e da história oral local, tornando o griô Zé Santana uma figura caricatural,
um mediador, da cultura da comunidade de Ilha Grande do Piauí.
4 Considerações finais
O estudo mostrou que há traços
representativos da cultura popular de Ilha Grande do Piauí no cordel “Juninho e
o cavalo assassino”, do griô Zé Santana. A relação dos ilhagrandenses como rio,
a religiosidade aflorada na região, as antigas tradições das vaquejadas na Fazenda
Cutia, bem como os rituais típicos da comunidade local são descritos no cordel.
Ratificou-se assim, a importância desta
obra para o Patrimônio Cultural Imaterial da cidade, revelando Zé Santana como
um verdadeiro griô, que constrói sua identidade através das obras que compõe,
às quais espelham as dinâmicas do cotidiano e da cultura do povo ribeirinho
desse território.
Neste
ensejo, considera-se que o objetivo proposto foi alcançado, tendo em vista que a
análise da presença de traços culturais, no supracitado cordel, mostrou aspectos
da cultura imaterial de Ilha Grande do Piauí, a partir do conhecimento de elementos
da obra do griô Zé Santana.
Acredita-se
que o legado deste griô poderá ser salvaguardado como herança da cultura
imaterial do município a partir de iniciativas que possibilitem a Zé Santana ampliar
o alcance de sua obra para toda a cidade, de modo que as novas e futuras gerações
tenham acesso aos cordéis, às músicas, às toadas e aos demais feitos artísticos
do griô.
Para
isso, ações como a realização de um festival de cultura popular, a organização
de uma cartilha educativa a partir das obras de Zé Santana, ou ainda a produção
de um documentário que retrate os fazeres e dizeres desse griô, mostrando sua
importância para a cultura imaterial da cidade, são viáveis.
Esta pesquisa não encerra as discussões sobre o tema, uma vez que se traçou uma primeira leitura sobre a obra de Zé Santana, uma literatura vasta que sugere análises mais aprofundadas, para que as atividades deste griô ganhem mais representatividade no cenário do município e para além deste.
Ilha Grande – PI, 21 de fevereiro de 2021.
Carta Ilhagrandense.
Dos autores ao povo.
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