domingo, 3 de maio de 2020

Sobre os trabalhadores de Ilha Grande.


O Quitandeiro

            Quitanda, segundo o dicionário é o local ou estabelecimento onde se vendem legumes, fruta, ovos, galinha, carvão etc. Pode significar também o tabuleiro em que o quitandeiro leva suas mercadorias e em alguns estado do Brasil, o termo se refere a uma pastelaria caseira, mas para o ilhagrandense ser quitandeiro tem um significado que extrapola os limites das definições. Em Ilha Grande a quitanda foi e é um modelo ativo de comércio que fornece artigos de necessidade diária, desde os gêneros alimentícios à equipamentos do uso doméstico, porém bem menos ativo nos tempos atuais. Vendia-se de tudo, lamparinas e querosene, penicos e cabos de foice, cesta e vassouras de palha de carnaúba, azeite de coco e mercadinhos de corante em papel pardo que servia para enrolar fumo, perfumes que em tempo de Coronavírus serviria para desinfetar as mãos. 

           Hoje o Carta Ilhagrandese vai falar sobre esse trabalhador que foi porta de entrada para o comércio autônomo na ilha. A proposta é tentar explicar o declínio desse modelo, que fique registrado que seu público alvo era classe média e baixa, o que de fato representava e representa uns 95%, se não mais, da população da cidade - qual ilhagrandense, com no mínimo 20 anos nunca comprou em uma quitanda? Então amigo leitor, senta que vamos contar a história.
       O quitandeiro, no auge do seu formato econômico, flertava com o estereótipo burguês, não aquele abastardo filho de nobre que recebia herança para se desligar do pai e dar início a uma carreira de comerciante nos burgos durante a Baixa Idade Média na Europa, nem o burguês apresentado por Karl Marx e contemporâneos que é dono de seu próprio meio de produção e explora o trabalhador, mas sim com o burguês atual, o “burguês safado”.

       Ilha Grande é conhecida hoje, pelo turismo e pela produção de pescados e crustáceos, mas antes de ser considerada cidade, ainda toda como bairro, a Ilha tinha uma produção de grãos, principalmente do arroz, que começou a ser cultivado para a subsistência em um período que o produto valorizado era a cana-de-açúcar, mas  que com o enfraquecimento da exportação da cana e com uma melhoria na produção (ainda manual) do arroz, teve como fonte econômica essa atividade. 

         Em plena expansão agrícola, o dono da quitanda era o principal fornecedor para as famílias dos agricultores artesanais, famílias em sua maioria numerosas, que acordavam cedo para que os membros aptos ao serviço na lavoura, se dirigissem, antes do nascer do sol, para os portos e de lá, enfrentar a maré até a roça. No caminho para o porto a quitanda era parada obrigatória, o lavrador deixava ordens especificas para a entrega de todos os suprimentos do restante da família e fazia a compra dos produtos que levaria consigo, tudo “na conta”, significava que a compra se amontoaria sobre uma pilha de outras e tudo seria pago noutra data.

            Na situação do ilhagrandense dos anos anteriores à chegada do novo milênio, a confiança do quitandeiro na palavra do trabalhador e na boa colheita eram ótimos negócios. Um quitandeiro chegava a atendar mais 50 famílias, todas as compras anotadas em cadernos ou cadernetas, pratica que ainda é possível ser observada, a diferença entre as duas formas de controlar o serviço prestado (caderno e caderneta) era principalmente a confiança, tendo em vista que o caderno ficaria com o quitandeiro e a caderneta com o cliente. Na hora de fazer o somatório das dívidas feitas diariamente, tudo era motivo para a desconfiança aparecer, dentre muitas maneira de averiguar se o cálculo, feito de forma rápida e quase silenciosa de ante dos olhos do comprador, estava correto, era o uso de um método matemático chamado “Noves Fora”, que consiste em somar os algarismos que compõem as parcelas da adição subtraindo-se os múltiplos de 9 e comparar com o mesmo cálculo feito com os algarismos dos resultados, o que nesse caso se fossem iguais, comprovaria que o somatório seria confiável, porém, de fato não o é, pois de maneira arbitraria o vendedor ou cliente poderia alterar os valores e continuar com resultados dos noves fora correto, bastava que, por exemplo, o quitandeiro acrescentasse um 0 a mais em qualquer número como em: 5,80 + 3,40 = 90,20 ou trocasse um número de lugar: 92,00, ao resolver os noves fora desses cálculos, você poderia jurar que estaria correto. Tudo bem, o erro talvez seja gritante, mas para um trabalhador analfabeto era impossível discordar da calculadora, que é a mente de um quitandeiro.

          Gerenciar e fornecer os produtos para as famílias concedia, diretamente, o poder de intervir nas relações dos trabalhadores e o meio social, como por exemplo a atribuição política, onde o quitandeiro era forte influenciador dos votos dessas famílias. Em uma época em que a miséria baforava o hálito quente da fome entre as paredes barro e os telhados de palha, o dono da quitanda, era uma figura admirada, invejada, cobiçada, temida e uma série de adjetivos quem implicavam sobre economia e alimentação.
           Atrás de seu balcão o quitandeiro não observou a onda de mudanças que aos poucos molhava seus pés. Por falar em balcão, que durante muito tempo foi um divisor entre o cliente e a mercadoria, começou a encolher e até sumir, isso foi a  gota d'água que visivelmente marca a falência do modelo. Na época, a falta de variedade de marcas e produtos, combinadas com o desconhecimento por parte da clientela, davam bons motivos para a existência de uma barreira, que tornava impessoal o gosto do comprador. As idas mais frequentes do ilhéu ao centro de Parnaíba, aos poucos trouxe a vontade de poder escolher e tocar nos objetos antes de efetuar a compra, o cliente aprendeu a circular por entre galerias de prateleiras e a quitanda, de modo geral, teve que se adaptar. Para alguns quitandeiros, foi um golpe duro demais.

          Outro motivo para o enfraquecimento do modelo, também está relacionado ao poder de escolha do cliente. O nascimento de novas quitandas e mercearias (vendas de modo geral), diluiu o vínculo do trabalhador com um único fornecedor, desse modo, se os preços fossem abusivos ou o atendimento fosse de má qualidade, o cliente poderia mudar de quitanda/comércio e isso também fez diferença para o quitandeiro raiz, que acreditava que o roceiro tinha uma dívida eterna pela confiança doada.
           As políticas de apoio às classe mais pobres, deram finais diferentes para os jovens que acordavam cedo e remavam até o roçado. Aos poucos, mas pontualmente, as condições mais favoráveis foram retirando as novas gerações do trabalho árduo, proporcionalmente essa diminuição na massa de trabalhadores que ficaria no lugar daqueles pobres que não tiveram a condição de escolha, fez diferença para o formato de venda das quitandas.   A criação da APA (área de proteção ambiental) do Delta do Parnaíba em 1996 e da RESEX (reserva extrativista) Marinha do Delta do Parnaíba em 2000 e suas políticas de preservação do meio ambiente, coincidiram com a chegada das novas formas de cultivar, colher e vender o principal produto de Ilha Grande, o arroz. A vinda de produtos industrializados para as prateleiras dos novos mercadinhos, substituiu gradualmente o arroz pesado em saquinhos, amarrados com nó cego, por embalagens lacradas por maquinas.

      O modelo comercial da quitanda perdeu força e declinou, o capitalismo anda de mãos dadas com o darwinismo, “não é o mais forte que sobrevive no final, e sim o mais adaptável”. As quitandas viraram mercadinhos e os agricultores são catadores de caranguejo, pescadores, guias turísticos, professores, trabalhadores do setor privado e público de modo geral, a evolução acontece.



Ilha Grande - PI, 03 de maio de 2020
Carta Ilhagrandense.

Dos Autores em quarentena.
 Aos trabalhadores de Ilha Grande.









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