O Quitandeiro
Quitanda,
segundo o dicionário é o local ou estabelecimento onde se vendem legumes,
fruta, ovos, galinha, carvão etc. Pode significar também o tabuleiro em que o
quitandeiro leva suas mercadorias e em alguns estado do Brasil, o termo se
refere a uma pastelaria caseira, mas para o ilhagrandense ser quitandeiro tem
um significado que extrapola os limites das definições. Em Ilha Grande a
quitanda foi e é um modelo ativo de comércio que fornece artigos de necessidade
diária, desde os gêneros alimentícios à equipamentos do uso doméstico, porém
bem menos ativo nos tempos atuais. Vendia-se de tudo, lamparinas e querosene,
penicos e cabos de foice, cesta e vassouras de palha de carnaúba, azeite de
coco e mercadinhos de corante em papel pardo que servia para enrolar fumo,
perfumes que em tempo de Coronavírus serviria para desinfetar as mãos.
Hoje o
Carta Ilhagrandese vai falar sobre esse trabalhador que foi porta de entrada
para o comércio autônomo na ilha. A proposta é tentar explicar o declínio desse
modelo, que fique registrado que seu público alvo era classe média e baixa, o que de fato representava e representa uns 95%, se não mais, da população da cidade - qual ilhagrandense, com no mínimo 20 anos nunca comprou em uma quitanda? Então amigo leitor, senta que vamos contar a história.
O
quitandeiro, no auge do seu formato econômico, flertava com o estereótipo burguês,
não aquele abastardo filho de nobre que recebia herança para se desligar do pai
e dar início a uma carreira de comerciante nos burgos durante a Baixa Idade
Média na Europa, nem o burguês apresentado por Karl Marx e contemporâneos que é
dono de seu próprio meio de produção e explora o trabalhador, mas sim com o
burguês atual, o “burguês safado”.
Em plena expansão agrícola, o dono da quitanda era o principal
fornecedor para as famílias dos agricultores artesanais, famílias em sua
maioria numerosas, que acordavam cedo para que os membros aptos ao serviço na
lavoura, se dirigissem, antes do nascer do sol, para os portos e de lá, enfrentar
a maré até a roça. No caminho para o porto a quitanda era parada obrigatória, o
lavrador deixava ordens especificas para a entrega de todos os suprimentos do
restante da família e fazia a compra dos produtos que levaria consigo, tudo “na
conta”, significava que a compra se amontoaria sobre uma pilha de outras e tudo
seria pago noutra data.
Na
situação do ilhagrandense dos anos anteriores à chegada do novo milênio, a
confiança do quitandeiro na palavra do trabalhador e na boa colheita eram ótimos
negócios. Um quitandeiro chegava a atendar mais 50 famílias, todas as compras
anotadas em cadernos ou cadernetas, pratica que ainda é possível ser observada,
a diferença entre as duas formas de controlar o serviço prestado (caderno e
caderneta) era principalmente a confiança, tendo em vista que o caderno ficaria
com o quitandeiro e a caderneta com o cliente. Na hora de fazer o somatório das
dívidas feitas diariamente, tudo era motivo para a desconfiança aparecer, dentre
muitas maneira de averiguar se o cálculo, feito de forma rápida e quase
silenciosa de ante dos olhos do comprador, estava correto, era o uso de um método
matemático chamado “Noves Fora”, que consiste em somar os algarismos que
compõem as parcelas da adição subtraindo-se os múltiplos de 9 e comparar com o
mesmo cálculo feito com os algarismos dos resultados, o que nesse caso se
fossem iguais, comprovaria que o somatório seria confiável, porém, de fato não o
é, pois de maneira arbitraria o vendedor ou cliente poderia alterar os valores
e continuar com resultados dos noves fora correto, bastava que, por exemplo, o
quitandeiro acrescentasse um 0 a mais em qualquer número como em: 5,80 + 3,40 =
90,20 ou trocasse um número de lugar: 92,00, ao resolver os noves fora desses
cálculos, você poderia jurar que estaria correto. Tudo bem, o erro talvez seja
gritante, mas para um trabalhador analfabeto era impossível discordar da
calculadora, que é a mente de um quitandeiro.
Gerenciar e
fornecer os produtos para as famílias concedia, diretamente, o poder de
intervir nas relações dos trabalhadores e o meio social, como por exemplo a
atribuição política, onde o quitandeiro era forte influenciador dos votos
dessas famílias. Em uma época em que a miséria baforava o hálito quente da fome
entre as paredes barro e os telhados de palha, o dono da quitanda, era uma
figura admirada, invejada, cobiçada, temida e uma série de adjetivos quem
implicavam sobre economia e alimentação.
Atrás de
seu balcão o quitandeiro não observou a onda de mudanças que aos poucos molhava
seus pés. Por falar em balcão, que durante muito tempo foi um divisor entre o
cliente e a mercadoria, começou a encolher e até sumir, isso foi a gota d'água que visivelmente marca a falência do modelo. Na época, a falta de variedade de
marcas e produtos, combinadas com o desconhecimento por parte da clientela,
davam bons motivos para a existência de uma barreira, que tornava impessoal o
gosto do comprador. As idas mais frequentes do ilhéu ao centro de Parnaíba, aos
poucos trouxe a vontade de poder escolher e tocar nos objetos antes de efetuar
a compra, o cliente aprendeu a circular por entre galerias de prateleiras e a
quitanda, de modo geral, teve que se adaptar. Para alguns quitandeiros, foi um
golpe duro demais.
Outro
motivo para o enfraquecimento do modelo, também está relacionado ao poder de
escolha do cliente. O nascimento de novas quitandas e mercearias (vendas de modo
geral), diluiu o vínculo do trabalhador com um único fornecedor, desse modo, se
os preços fossem abusivos ou o atendimento fosse de má qualidade, o cliente
poderia mudar de quitanda/comércio e isso também fez diferença para o
quitandeiro raiz, que acreditava que o roceiro tinha uma dívida eterna pela
confiança doada.
As
políticas de apoio às classe mais pobres, deram finais diferentes para os
jovens que acordavam cedo e remavam até o roçado. Aos poucos, mas pontualmente,
as condições mais favoráveis foram retirando as novas gerações do trabalho árduo, proporcionalmente
essa diminuição na massa de trabalhadores que ficaria no lugar daqueles pobres
que não tiveram a condição de escolha, fez diferença para o formato de venda
das quitandas. A criação da APA (área de proteção ambiental)
do Delta do Parnaíba em 1996 e da RESEX (reserva extrativista) Marinha do Delta
do Parnaíba em 2000 e suas políticas de preservação do meio ambiente,
coincidiram com a chegada das novas formas de cultivar, colher e vender o
principal produto de Ilha Grande, o arroz. A vinda de produtos industrializados
para as prateleiras dos novos mercadinhos, substituiu gradualmente o arroz
pesado em saquinhos, amarrados com nó cego, por embalagens lacradas por
maquinas.
O modelo
comercial da quitanda perdeu força e declinou, o capitalismo anda de mãos dadas
com o darwinismo, “não é o mais forte que sobrevive no final, e sim o mais adaptável”.
As quitandas viraram mercadinhos e os agricultores são catadores de caranguejo,
pescadores, guias turísticos, professores, trabalhadores do setor privado e público
de modo geral, a evolução acontece.
Ilha Grande - PI, 03 de maio de 2020
Carta Ilhagrandense.
Dos Autores em quarentena.
Aos trabalhadores de Ilha Grande.
Aos trabalhadores de Ilha Grande.
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