segunda-feira, 29 de junho de 2020

Sobre a formação da Colônia de Pescadores

 

Pescando histórias: notas sobre a memória histórica da Colônia Z-7 de Ilha Grande

 

Pedro Vagner Silva Oliveira

 

Uma das instituições mais antigas de Ilha Grande, a Colônia de Pescadores Z-7, nesse mês completa 91 anos de existência. Conhecida pelas gerações mais antigas e pelas mais novas, a Colônia congrega pescadores e pescadoras, trabalhadores que tiram seu sustento a partir do árduo labor nas águas doces e salgadas. Mas como surgiu a Z-7? O que sabemos sobre ela? Por qual razão foi criada essa instituição? O texto que aqui orgulhosamente apresento é fruto de uma pesquisa feita entre o ano de 2018 e 2019 sobre a história da Colônia de Pescadores Z-7, que é muito possivelmente, uma das primeiras do Piauí. Ressalto que não busco falar apenas da Colônia, mas também dos pescadores que fizeram parte dela, afinal, as pessoas são protagonistas da história. Como não daria para sintetizar 91 anos nesse breve texto, enfoquei os anos 1920 até meados de 1940, essa escolha se dá pelo motivo do “esquecimento” que acomete os primeiros anos da história da Z-7.

Comecemos então nossa navegação a partir do mar da história. Quando aprendemos História na escola, nossos professores falam sobre a Proclamação da República no Rio de Janeiro e sobre o projeto das elites de modernizar a nação e “civilizar” a sociedade brasileira daquele período. A impressão que temos é que esse processo foi afastado do nosso estado e da nossa cidade, afinal, estamos tão distantes do que era a capital. Bem, não é por aí, vamos conectar alguns pontos e vermos que o projeto republicano foi disseminado em vários lugares, inclusive, nos pontos mais remotos do país.

As Colônias de Pescadores no Brasil, surgiram no começo do século XX, poucos anos depois da proclamação da República em 1889 e foram frutos de uma tentativa de modernização e de nacionalização da pesca. Entre 1919 a 1923, o comandante Frederico Villar e outros marinheiros a bordo do Cruzador José Bonifácio, empreenderam o que ficou conhecido como “missão” do Cruzador José Bonifácio, fundando durante esses anos, 800 colônias ao longo de todo o litoral brasileiro. O intuito das colônias não era o de proteger os colonizados, como fazem atualmente os sindicatos, mas transformar os pescadores em vigias da extensa costa brasileira, essa bastante desprotegida – a Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre 1914 a 1918, revelava ao país o quão suas praias careciam de vigilância e proteção contra possíveis ataques estrangeiros. A solução foi transformar a população pesqueira em reserva naval, isto é, em trabalhadores a serviço da Marinha. O que isso quer dizer na prática? Que todos os pescadores colonizados a partir daquele momento passariam a ser entendidos como marinheiros de terceira classe.

Villar, o comandante da missão, escreveu nos anos 1940 um livro contando a história de suas viagens, segundo ele “todos os pescadores do lugar eram obrigados a pertencer à sua colônia, devendo registrar os seus barcos e aparelhos de pesca e contribuir com a importância de dois cruzeiros mensais para a associação de classe”. É importante dizer que antes das Colônias, já havia controle sobre os pescadores e era feito pelas Capitânias dos Portos. Em relatórios anuais, o Ministério da Marinha do Brasil reportava dados e informações, e em alguns deles, informava a quantidade de pescadores existentes nos estados. O Relatório do Ministério da Marinha de 1919, avisava que em 1908, “apenas 55 pescadores se acha[va]m matriculados na Capitânia dos Portos do Estado do Piauí, o que é excessivamente exíguo” (Ministério da Marinha: 1919, p. 46). Considerado o número bastante baixo, o relatório dizia também os locais em que a prática pesqueira artesanal era realizada em solo piauiense, bem como os aparelhos e os núcleos de pescadores com o número de trabalhadores no litoral: “Barra Grande com uns trinta pescadores; Amarração com uns vinte; Pedra do Sal e Canárias com uns dez cada um” (Ministério da Marinha: 1919, p. 47). O leitor há de estranhar que Canárias foi citada como se fosse Piauí, num passado não tão distante, a ilha pertencia ao Piauí e o Delta era território de litígio entre esse estado e o Maranhão.

Há vários silêncios sobre as Colônias piauienses, isso se dá pela falta de documentos, ou melhor, do que nós historiadores e historiadoras chamamos de “fontes”, esse material é de suma importância pois, é a partir dele que temos ainda que de forma parcial, acesso ao passado. Dos documentos mais antigos encontrados ao longo da pesquisa feita no site do Center for Research Libraries, o Relatório do Ministério da Marinha de 1920 afirma o Piauí possuía três colônias, 89 pescadores matriculados e 60 embarcações arroladas (Ministério da Marinha: 1920, p. 57-58). Infelizmente não sabemos quais eram essas colônias, suas numerações ou locais em que estavam sediadas, tampouco o ano de fundação. No entanto, a partir de outra fonte, dessa vez encontrada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, temos indicio de que possivelmente uma das três colônias mencionadas uma delas era a do antigo povoado de Morros da Mariana.

A revista Voz do Mar, publicação oficial da Confederação Geral dos Pescadores, em sua edição de 1926 exigia que todas as três “colônias [do Piauí] fossem reorganizadas”. Esse esforço deveria ser realizado entre as autoridades locais, juntamente com o Capitão dos Portos. Acreditamos que a colônia dos Morros seja uma das mais antigas do estado, pois, a revista Voz do Mar afirmava que o Piauí, “embora visitado pela missão Villar, que aí fundou e instalou três colônias, abandonados e sem fiscalização foram os núcleos de pescadores se desorganizando até chegarem a completa desagregação” (Revista Voz do Mar: 1928, 32). As colônias foram reorganizadas pelo capitão-tenente Eurico Correa de Mello juntamente com Benedito Pereira do Nascimento, 2º tenente reformado. A Colônia dos Morros da Mariana possuía duas escolas (São José e São Sebastião) “com mais de 100 alunos”. As escolas mantidas pelas colônias eram importantes no sentido de educar e instruir os filhos e filhas dos pescadores, e eram mantidas a partir das mensalidades pagas pelos pescadores colonizados.

Como dissemos anteriormente, o controle sobre a pesca e pescadores já existia. Em 1923 foi aprovado o decreto nº 16.197 que d,ava novo regulamento para as Capitânias dos Portos. A normativa em seu quinto paragrafo afirmava que estava a cargo das Capitânias “a matricula ou a inscrição marítima de todos os indivíduos que empregam a sua atividade no mar, rios e lagoas, inclusive o pessoal marítimo de todas as repartições federais, estaduais, municipais, pescadores e os estivadores”. A lei assegurava o controle das colônias de pescadores através das mãos da Marinha por intermédio da Capitânia dos Portos. O anuário Almanaque da Parnaíba publicou que em 1924, a Capitânia dos Portos do Piauí iria entre janeiro a março daquele ano, fiscalizar matriculas das pessoas que trabalhavam no porto e na pesca, além de fazer a renovação das licenças das embarcações que foram registradas, dentre elas, as pesqueiras. 

Nessa época, a colônia dos Morros da Mariana possuía numeração diferente, a atual Z-7 se chamava Z-3 e uma de suas escolas, a São José, recebeu dinheiro, 100$000 (cem contos de reis) em 1928 para continuar com suas atividades escolares referentes aos meses de janeiro a março, essa mesma escola perdeu o auxílio naquele ano devido à baixa frequência dos alunos em março. Esse problema parece ter sido comum. Nos três meses seguinte a escola novamente perdeu dinheiro pelo mesmo motivo. Pobres, os filhos de pescadores muitas vezes tinham de deixar de estudar a fim de trabalhar juntamente com seus pais na pesca ou na agricultura. 

Em 1929 foi fundada a Confederação Estadual de Pescadores do Piauí com sede em Parnaíba, apoiado pelo capitão dos Portos, comandante Nelson Simas de Souza. Ao que tudo indica, a Confederação das Colônias de Pescadores do Estado do Piauí era presidida por não pescadores. José Euclides de Miranda foi o primeiro presidente da Confederação Estadual, Francisco Domingos Portella, secretário e Manoel Vieira Farias no cargo de tesoureiro. A Colônia de Morros da Mariana já aparecia como Z-7 ao invés de Z-3. No ano de 1929 o Piauí possuía sete colônias: a Z-1, fundada em 1926, possuía 192 sócios, localizada em Amarração (Luís Correia); a Z-2, 217 sócios, em Parnaíba; Z-3, abrangia da Pedra do Sal ao Cotia, tinha 65 sócios; Z-4, em Buriti dos Lopes; Z-5, sediada em Teresina; Z-6, em Amarração, e por fim, Z-7, que neste ano possuía 108 associados e compreendia as localidades de Canto do Igarapé, Baixão e Canárias. Informação importante é que a colônia dos Morros da Mariana e outras três colônias piauienses, possuíam “cadernetas no Banco do Brasil com dinheiro em deposito”. 

Nesse ano, Carlos Pena Botto viria do Rio de Janeiro para substituir Nelson Simas no cargo de Capitão dos Portos. Em seu livro de memórias, o militar carioca expõe o trabalho realizado na capitania entre 1929 e 1930. Com o olhar elitista e preconceituoso, Botto afirmou que os pescadores eram “gente rebelde, teimosa, ignorante e pouco inteligente” (BOTTO: 1931, p.142). Escrevendo sobre suas viagens de inspetoria nas colônias do Piauí, Barra Grande e Parnaíba foram as duas primeiras a serem visitadas. No dia 26 de janeiro de 1930, Pena Botto a fim de visitar a Z-7, alugou um cavalo para percorrer uma viagem de “duas léguas, idade e volta”.  De acordo com ele, Morros da Mariana possuía um “núcleo de 200 pescadores”. 

   

A falta de documentos prejudica saber algumas informações importantes sobre os primeiros presidentes das colônias do Piauí, porém, foram encontrados registros em jornais que afirmam que em 1928 o presidente da Colônia Z-1, de Amarração era Manoel Borges da Fonseca, e Z-2, de Parnaíba, que teve como presidente eleito no mesmo ano, Francisco Domingues Portella. O que sabemos é que a gestão de 1930 da colônia dos Morros era formada por Fernando Oliveira no cargo de presidente; João Ignácio de Araújo como secretário e Emiliano Farias do Rego, tesoureiro. A colônia de Pedra do Sal, Z-3, era presidida por Ângelo Vieira de Souza - Leocadio dos Santos e Firmino Antônio dos Santos eram o secretário e o tesoureiro, respectivamente. Em 1930 aconteceu a chamada “Revolução de 30”, era o fim da política do Café com Leite, isto é, da oligarquia paulista e mineira que se revezavam no poder. O gaúcho Getúlio Vargas destituiu o presidente paulista Washington Luís, ficando em seu lugar até 1945, na “nova” política de Vargas, as colônias deixam de responder diretamente ao Ministério da Marinha e passam para a tutela do Ministério da Agricultura, porém, a Marinha brasileira continuou exercendo influência e poder sobre todas as colônias.

Em 1933 o número de colônias e pescadores matriculados no Piauí, aumentou, eram naquele ano 838 pescadores matriculados na Capitania do Portos do estado, dois anos antes, Penna Botto documentou ter “220 pescadores” e “199 licenças expedidas para embarcações de pesca”. A Z-7, de Morros da Mariana, possuía 157 associados e duas escolas: Comandante Zimas” – 52 alunos, e “Aldenora Mousinho” – 40 alunas. Essas escolas eram de extrema importância para o projeto defendido pela nação brasileira naquele momento, pois, através da educação dos pescadores e de seus filhos, o “atraso” das gentes das praias seria “superado” e “sanado”. Era ensinado nessas escolas: História Natural, Letramento, Matemática (geometria e aritmética) e caligrafia. Os livros eram mandados pela Confederação Geral, no Rio de Janeiro, e cada escola recebia um único exemplar. Cadernos de caligrafia também eram dados aos alunos conforme a quantidade de estudantes matriculados.

Dona Tereza Severiano, moradora da Pedra do Sal, foi uma ex-aluna da escola da Colônia Z-7 e em uma entrevista realizada 2016, a senhora afirmou: “nos Morros da Mariana tinha a escola da Colônia, não tinha esse negócio de prefeito, não tinha esse negócio de governador não, era da colônia”. Sua fala ilustra a ineficiência e mesmo ausência do estado no interior do município que se orgulhava de seu progresso material vivenciado entre os anos 1930 a 1950. A memória de Dona Teresa, num trabalho afetivo, “guardou” a vestimenta usada pelos que estudavam nas escolas. Segundo a ex-aluna, em outra entrevista, desta vez cedida para a comissão Ilha Ativa, a senhora disse que “a farda da escola era branca com quatro preguinhas, quatro na frente e quatro atrás, a golinha era de marinheiro, passado era azulzinho passado uns cadarcinhos branco quatro feito ferro de afundiar bem aqui na ponta da gola da farda, era isso que existia”. Por sorte, encontramos alguns poucos registros fotográficos dos meninos e meninas que estudaram nessas escolas. 

 

Legenda: Parada escolar do dia 29 de junho, promovida pelas escolas Cte. Simas e Aldenora Mousinho da Colônia de Pescadores Z-7. Ano: 1939. Fonte: Revista A Voz do Mar. 1939.

 

Citemos os usados no ano de 1932: História Natural de Waldemiro Potsh; Primeiro Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho; Geometria Prática de Olavo Freire; Aritmética elementar de Trajano e por fim, Aritmética de Ruy Lima e Silva.  Em 1936, a Z-3 de Pedra do Sal foi extinta, fundindo-se com a Colônia dos Morros da Mariana formando uma nova Z-7, chamada de Comandante Esperidião, possuindo 65 colonos e 19 velas a remo matriculadas. Como se pode ver, o número de colonos flutuava, alguns anos o número aumenta e noutros diminui, mostrando imprecisão dos dados. Com a junção das colônias, a escola existente na Pedra do Sal foi fechada e uma nova foi construída nos Morros, possuindo 36 alunos matriculados. Além da nova, nos Morros existia outras duas escolas que juntas tinham 95 filhos e filhas de pescadores. Não sabemos o nome da terceira escola, os documentos não citam, contudo, a Revista Voz do Mar de 1940 trazia em sua edição que o número de escolas da Z-7 aumentou, eram três, Aldenora Mousinho, Comandante Simas e Presidente Getúlio Vargas.

Em 1939 estourou outra guerra que assustou as pessoas. Rádio e jornais falavam na Segunda Guerra Mundial que duraria até 1945. Os pescadores novamente trabalharam como vigias das praias brasileiras. Os pescadores que não estavam em dias com a Colônia tinham as tarrafas e linhas tomadas, quando não, eram presos. Ao entrevistarmos pescadores mais idosos, foi comum a narrativa de que esses trabalhadores eram presos caso não estivessem em dias com a mensalidade da colônia. Apesar de nunca citarem nomes nas entrevistas, essa história, que não é de pescador, é verídica. Nos anos 1940, o jornal parnaibano, o Norte, afirmou que as pessoas que vinham de Parnaíba, ao fazerem temporadas balnearias nos Morros e em Pedra do Sal, “contaram-nos a forma violenta com que é feita a cobrança de mensalidades aos pescadores colonizados, assim como aos que não estão ainda matriculados” (O Norte. 03/01/1945, p. 4). Segundo esse jornal, os pescadores eram ameaçados pelas autoridades de “serem tomadas as tarrafas e linhas de anzóis, ameaças essas que são frequentemente executadas. A ameaça de prisão, às vezes com soldados ao lado dos cobradores, também está em voga naquelas paragens”. Como pode-se ver a partir dessa fonte, a violência sobre os pescadores existia e era prática comum nas comunidades pesqueiras. Como pode-se ver, não é de hoje que pescadores e pescadoras passam por dificuldades além da falta de peixe, remando contra a maré, esses homens e mulheres vem bravamente de gerações, resistindo. 

 

Legenda: Escola Presidente Vargas e Comandante Pina da Colônia Z-7 em desfile cívico de 7 de setembro em Parnaíba. Ano: 1953. Fonte: Revista A Voz do Mar, 1953. 

 Ilha Grande – PI, 29 de junho de 2020

Carta Ilhagrandense

 

 

Fontes:

 

Almanaque da Parnaíba. 1928.

BOTTO, Carlos Penna. Meu Exílio no Piauhy. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional: 1931.

Relatório do Ministério da Marinha. Anos de 1919 e 1922.               

Revista Voz do Mar. Várias Edições.

VILLAR, Frederico. A “missão” do cruzador José Bonifácio. Rio de Janeiro. Laemmert: 1946.


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