domingo, 12 de julho de 2020

Sobre o diagnóstico da Covid-19 em Ilha Grande.

Notificação de casos de Covid-19 em Ilha Grande

Gráfico mostra o desenvolvimento dos infectados, curados e óbitos da Covid-19 em Ilha Grande de 08 de maio a 11 de julho de 2020.
(Dados obtidos pela página da Secretaria de Saúde de Ilha Grande) 

       Nos últimos dias a cidade de Ilha Grande foi bombardeada pelo aumento de casos da doença do novo coronavírus e a cidade viu o número de infectados atingir a primeira centena, o que levou a diversos questionamentos sobre a veracidade das notificações. Escutamos relatos como: “qualquer gripe agora é coronavírus” ou “isso são os políticos tentando ganhar mais dinheiro”, mas antes de expressar tais afirmações é importante perguntar: você sabe como é feito o diagnóstico e notificação de casos de Covid-19?


    O Carta Ilhagrandense conversou com Jaiane Cruz, ela é formanda do curso de biomedicina da UFDPar, moradora de Ilha Grande e colaboradora do nosso blog. O biomédico está apto a auxiliar no diagnóstico e avaliar clínico-laboratorialmente as doenças, os agentes etiológicos e os vetores, seja na atuação hospitalar ou na pesquisa, emitindo laudos e pareceres concernentes aos diversos aspectos fisiopatológicos dos pacientes, além de realizar pesquisas para a descoberta de novas doenças e novas curas. Fique então com o texto dela.


        "É necessário saber que todas as notificações, de casos confirmados, são feitas após a realização de testes diagnósticos; não sendo feitas apenas com base em dados clínicos observados pelo médico, sendo assim, nem toda gripe é considerada coronavírus. Porém todo caso de Síndrome gripal deve ser relatada, não aparecendo nos boletins das Secretárias de Saúde. Quando um desses casos é confirmado como sendo causado pelo novo coronavírus, é realocado como tal. 

        No início dos casos, a mais ou menos 4 meses, apenas os testes moleculares eram realizados, aqueles cujas amostras são secreções respiratórias obtidas por swab nasofaríngeo (cotonete estéril), a imagem da coleta ficou bem conhecida. Os testes moleculares detectam o próprio agente patológico e podem ser feitos a qualquer momento após a infecção, tendo sensibilidade e especificidade mais elevadas que os testes sorológicos (amostra de sangue). Entretanto, sua execução é mais demorada e demanda estrutura laboratorial e profissional que é pouco encontrada no Brasil.

Swab nasofaríngeo.

        Por essa razão o governo decidiu investir em teste sorológicos, conhecidos também como testes rápidos, esses fazem a detecção de anticorpos IgM e IgG produzidos especificamente contra o covid. O IgM é o primeiro anticorpo produzido após a infecção e se mantém até a eliminação total do antígeno viral, os casos considerados recuperados são aqueles em que esse anticorpo não está mais presente. Já o IgG é o anticorpo de proteção, produzido tardiamente na doença e permanecendo após a recuperação, esse é um dos anticorpos que denotam permanência da imunidade, esperando-se que persista por muito tempo no organismo impedindo uma reinfecção, para o coronavírus tal imunidade ainda é incerta, não se sabendo ao certo se há, nem a intensidade ou o período de permanência.

           É recomendado a realização do teste sorológico a partir do 7° dia de sintomas, quando se espera que os anticorpos estejam em maior concentração; dessa forma aumentando a porcentagem da sensibilidade do teste, já que estes, infelizmente, pecam em sensibilidade principalmente quando realizados nas fases iniciais. O que isso quer dizer? Que eles têm uma propensão maior a dar um resultado errado, o chamado falso-negativo, por isso o Ministério da Saúde aconselha que o resultado desses testes não seja utilizado isoladamente, mas que também se leve em consideração sintomas e contato com pessoas sabidamente positivas.

        As notificações são realizadas após a testagem, sendo  casos confirmados todos aqueles que apresentam IgM positivo, casos recuperados os IgG positivo e IgM negativo, os que apresentarem teste negativo para ambos são descartados do boletim. Trago abaixo ilustrações de dois modelos de informe epidemiológicos adotados pela cidade de Ilha Grande, e explico os dados expostos, atualmente:

Figura 1. Informe epidemiológico da cidade de Ilha Grande do dia 24 de abril, primeiro caso confirmado.

Figura 2. Informe epidemiológico atual da cidade de Ilha Grande do dia 11 de julho.

        Observe que ao longo do tempo alguns elementos deixaram de ser expostos, isso ocorre pois os números de casos suspeitos, descartados e notificados elevam-se bem mais do que os confirmados e deixa de ser útil expô-los. Além de que a partir do momento em que o vírus se instala na comunidade e a busca por contatos é de difícil execução todos os indivíduos são considerados suspeitos, apresentando sintomas ou não, o estágio conhecido como "transmissão comunitária".

        Além da notificação de casos de covid todos os casos de Síndrome Gripal e de Síndrome Respiratória Aguda Grave também devem ser notificados, caso o diagnóstico para coronavírus não seja realizado na oportunidade. Aqueles que posteriormente realizarem o teste e apresentarem resultado positivo deveram ser renotificados e apresentados no boletim. Todos os casos devem ser acompanhados e para a notificação é necessário que o paciente preencha uma ficha com dados como: cpf, identidade, endereço, etc.


Gráfico mostra o número de pessoas infectadas e número de habitantes de algumas cidades do norte do Piauí.



        Espero, caro leitor, que a partir das informações sobre a dinâmica de notificação você possa ser crítico sempre que ouvir as frases expostas no início desse texto. Não há como descartas as manipulações, principalmente quando observamos o país em que vivemos, porém não é arbitrariamente que as notificações são realizadas, propagar tais ideias como se fossem verdades absolutas sem a consciência de que há todo um processo por trás, pode trazer males imprescindíveis. Já que, quanto menos pessoas se cuidarem, as vezes guiadas por esses pensamentos errôneos, mais o vírus se alastra, e no final é tudo que um parasita obrigatório como ele deseja, não é?"

Figura 3 Charge sobre o coronavírus no Brasil, disponível no instagram @gram.positivo


            Ilha Grande – PI, 12 de julho de 2020.

Carta Ilhagrandense.

Dos autores ao povo.
Agradecemos aos leitores.

 



 


domingo, 5 de julho de 2020

Sobre a Praia do Cutia

Morro Braco - Dunas de Ilha Grande 


            O mês de Julho, consagrado como férias do meio do ano, tem peculiaridades únicas em Ilha Grande. Além do Delta e das dunas, a ida a praia, sem dúvida, é o evento mais comum entre turistas e nativos. A praia da Pedra do Sal é a mais conhecida e frequentada, pela curta distância e pelo acesso fácil, feito pela PI-116, mas quem mora na Ilha tem uma segunda opção de praia sem precisar sair da cidade. A Praia do Cutia é, segundo a distribuição territorial, a única praia de Ilha Grande (cidade), inclusive o Carta já mostrou um recorte de jornal de 1996 que trazia uma matéria com o título: Ilha Grande cidade que parece bairro e em um trecho dessa matéria dizia “Ilha Grande apesar do nome é um município sem praia”.

Destacado por uma linha branca e marcado em vermelho está o perímetro do Cutia, no canto inferior esquerdo está o porto dos Tatus.


 

O Cutia, hoje habitação de um parque eólico, já foi uma mata de cajueiros, muricis e carnaúbas. Local amplo e desértico em relação a habitação humana, cravejado com lendas e mitos sobre o passado da cidade, atualmente somente o senhor Pedro Militão e sua esposa residem em uma área de quase 30 km2. Como toda a geografia da Ilha, o Cutia tem morros de areia e sobre eles cresce uma vegetação rasteira e grossa, que fixa boa parte da terra proporcionando condições para a formação de lagoas sazonais entre um morro e outro. As lagoas garantem água para os animais que pastam pelo Cutia e peixes para a polução. O cenário é ímpar, digno de qualquer reality show que te joga no meio do nada e você tem que sobreviver como poder.

 

Senhor Pedro Militão e sua esposa, dona Graça. Ele é um dos últimos Tremembés que habitam o litoral do Piauí, senhor Pedro mora em uma parte do Cutia que se chama Saquinho.


Excussões formadas principalmente por moradores dos bairros Cal e Baixão, foram comuns no começo da década de 90 e se prologam até os dias de hoje; porém com modificações. Esse ano, o banho no Cutia foi mais uma tradição que teve seu ciclo interrompido por conta da COVID- 19. Foi justamente para relembrar esse costume que o Carta conversou com organizadores e participantes de um dos grupos que faziam esse passeio.

Um momento após as tarefas. 
(arquivo Luã Santos)


Falamos com Samuel Ribeiro, filho de dona Zilmar e senhor Antônio Alcino que mantém a tradição no bairro Cal. Samuel cresceu tendo essa aventura confirmada pelo menos 2 vezes por ano e vendo seus pais se responsabilizarem pela organização.

Era o momento mais esperado do ano. Acampar na Praia do Cutia deixava a galera eufórica. Dona Zilmar não foi a precursora, mas há quem diga que ela era a mais divertia e cuidadosa, tomava conta de muitos filhos, de sangue e os que se consideravam como tal.

Samuel Ribeiro.

Vista do racho para praia.
(arquivo Luã Santos)


Organizar tudo não era tarefa simples, pois diferente da ida para a Pedra do Sal, ir para o Cutia era se preocupar com mantimentos para uma média de 70 pessoas passarem 2 noites e 3 dias acampados sob cajueiros.  

Com minha mãe as viagens começaram em agosto de 1993. Todos os anos um pequeno grupo era organizado uma semana antes para averiguar e preparar o local da estadia. O rancho é um lugar inesquecível. A partida para o acampamento começava na madrugada, momento em que todos se reuniam na casa da responsável e já começa o alvoroço para a partida.

Samuel Ribeiro.

Vista do racho para o Saquinho.
(arquivo Luã Santos)


A lua cheia marcava a melhor data. Nos primeiros anos o banho era nos meses de agosto e setembro, os participantes saiam na madrugada do sábado, passando a noite e voltando no domingo à tarde, mas o tempo no acampamento corria muito rápido e não demorou muito para acrescentarem o mês de julho e mais um dia. O percurso de cerca de 7 km era iniciado às 4:30 da manhã e por volta das 7 chegavam as primeiras pessoas no racho, assim que todos tivessem chegado as tarefas seriam divididas.  

Canto inferior esquerdo, o perímetro vermelho é o bairro Cal e alinha branca é o percurso da viagem.

Apesar da distância, ninguém reclamava, pois a ida era preenchida com muitos sorrisos e um bate-papo sobre as inúmeras aventuras, não percebíamos o cansaço. Sempre havia aqueles que chegavam primeiro no local, geralmente eram os que acompanhavam o transporte de todos os mantimentos para a jornada feito em cangalhas sobre o lombo de jumentos, eles eram um pouco apressados, mas as vezes empancavam e só iam na base do empurrão. Chegar primeiro era importante, pois cada um tiraria sua rede da mochila e procuraria um local onde pudesse armá-la para passar a madrugada e acordar disposto para o dia seguinte. As atividades eram divididas de acordo com o físico de cada um, pescar, recolher lenha, cuidar da comida, cavar a cacimba e buscar água, dar comida aos animais eram algumas das várias coisas que eram ocupação para todas as idades.
Samuel Ribeiro.


De certo, esse é um dos momentos no finalzinho da tarde. Ao fim de um dia cheio dona Zilmar sorri ao fundo.
(arquivo Luã Santos)

As tarefas que preenchiam o dia, findavam um pouco antes do entardecer, era a hora de buscar no ombro trocos grossos para queimar durante a noite. Ao redor da fogueira a socialização do grupo acontecia, troca de experiências e uma boa conversa sob a luz da lua que refletia na areia branca e preenchia o ar com um saudosismo das gerações anteriores à chegada da energia elétrica.

A tarde, antes do pôr do sol, os adolescentes iam pegar carnaúbas para fazer a fogueira que aquecia os corpos da garotada enquanto os mais velhos enchiam nossa imaginação com as histórias que contavam, eram piadas, estórias de assombração, mentiras cabulosas e muitos outros contos que arrancavam risadas e algumas vezes causavam medo, era bom demais! Enquanto ouvimos os contos, armavam-se os espetos ao redor da fogueira, que nessa altura se desmanchava em brasas, e o sapeca comia solto. Depois de tudo isso, lá pelas 10 da noite, os mais novos procuravam seu lugar de descanso, conduzidos pela fadiga do longo dia.

Samuel Ribeiro.

        Para os amantes dessa aventura, o passeio começava a acabar assim que iniciava, mas nada deixava o fim tão claro, quanto o despertar na manhã do domingo. Muitas redes já estavam de volta nas mochilas quando os que últimos acordavam, todos em um ritual reverso à chegada recolhiam seus pertences. Das mochilas saiam tiras de bolachas, pães e que o mais se achasse justo para o café, por parte de dona Zilmar era servido café forte e pedaços de bolo de milho, puba e goma, se a pescaria tivesse sido farta, era possível conseguir peixe assado com farinha. A caminhada do rancho até a praia era de mais 1 km e esse quilometro seria acrescentado a volta, que após um exposição de 6 horas ao sol e água salgada era a prestação final de um bem valioso que permanece para toda a vida, a lembrança.  

Do racho para a praia.


Domingo, o café estava pronto as 6 da manhã, porque tínhamos que recolher nossos pertences e partir para o banho de praia. Nos dirigíamos até a beira da praia, uma caminhada um pouco distante. Passávamos o dia inteiro jogando futebol, banhando, brincando de tudo que tínhamos direito. A partida estava se aproximando e nos rostos vermelhos do sol já percebia-se a tristeza no olhar da criançada. Duas da tarde, todo mundo com suas mochilas, agora um pouco mais vazias, davam os primeiros passos para casa, dessa vez com muito menos empolgação, é claro. O sol ardia no rosto, no corpo cravejado de sal do banho de mar. “Até o próximo ano”, era o que muitos diziam.

Samuel Ribeiro.

Na madrugada da partida, mães preparavam farofas. Os “fritos” eram consumidos nas mais diversas ocasiões: no primeiro dia para os gulosos e os que não comiam peixe, na manhã do domingo para um café mais reforçado ou no almoço para se preparar para o retorno, porém o desafio era mantê-lo intacto para chegada de volta na casa da tia Zilmar.

Para que o dia não terminasse triste, na chegada a galera pegava o restante do frito e faziam uma roda, íamos comer uma mistura de peixe, frango, pato, camarão, ovo e sempre sorrindo e lembrando dos momentos que marcaram os dias no racho. Agora era só se preparar para o próximo ano.

Samuel Ribeiro.
 
 
A juventude pousa para a foto em frente a entrada do rancho.
(arquivo Luã Santos)


O Carta conversou também com Luã Santos que frequentou os grupos, para saber qual era a visão dos adolescentes filhos de outras pessoas, mas que iam sob os cuidados de dona Zilmar e senhor Antônio.

Praia do Cutia, ambiente de raras belezas e muita diversão, onde a tecnologia não era o foco, e sim o momento de simplicidade de estarmos ali, lugar esse onde se aglomeravam diversas pessoas num rancho para curtir as noites em claro e dias de muita curtição com sol, mar e boas pescarias. Ali em que o peixe era comido fresquinho na hora.  Era um dos passeios mais esperado do ano, íamos junto com a turma de dona Zilmar e seu Antônio Alcino. A caminho escutávamos histórias dos passeios anteriores vivenciados pelos mais velhos, como a história da mulher chorona, ahhh a ansiedade tomava de conta.

Luã Santos.

Uma pausa no caminho.
(arquivo Luã Santos)

A fala de Samuel e Luã são bem semelhantes, assíduos no passeio, eles conseguem expor a cronologia dos acontecimentos de forma semelhante e sistemática, mostrando como tudo estava organizado e claro até para os mais jovens.

Durante a chegada ao rancho, logo ao amanhecer cada um procurava seu canto para se aconchegar, em seguida partíamos para o trabalho em equipe por livre e espontânea pressão de dona Zilmar, pois ali ninguém ficava parado, íamos pescar,  buscar água para  beber e lenha para cozinhar. Porém o importante era estarmos entre amigos compartilhando as emoções de uma noitada de luau ao redor de uma enorme fogueira, saboreando um delicioso peixe assado e um litro de pinga ao som do violão do meu amigo Samuelzinho.

Samuelzinho e seu violão.
(arquivo Luã Santos)


Luã lembra que antes das redes sociais era preciso um ambiente real para conhecer e se relacionar com os demais. Casais se formaram e se desfizeram durante as idas ao Cutia.

Ali se afloravam as paqueras as escondidas de dona Zilmar, pois logo que a mesma adormecia, as fugas eram tremendas e os encontros se concretizavam. Passavam se os dias e lá retornávamos para casa com a saudade de um breve retorno. Hoje, infelizmente esses passeios não acontecem mais como antigamente, pois a modernidade influenciou as novas gerações, deixando a simplicidade de lado e dando maior importância as novas atrações compartilhados entre amigos.

Uma pequena fração do grupo em uma noite no rancho.
(arquivo Luã Santos)


 

          Depois dos depoimentos dos dois rapazes, nada mais justo que falar com dona Zilmar. Ela que dedicou 26 dos seus 67 anos para manter a tradição do seu grupo, nos contou como se sentia sendo a matriarca nessa aventura.

Eu me sentia um mãezona, porque eu não queria dizer “não” para levar só minha família, não queria dizer “não” para as outras mães, porque quando elas chegavam já vinham dizendo que o filho chorava, queria ir, mandavam elas virem falar comigo para pedir para eu levar e eu acolhia essas pessoas.

Dona Zilmar.

            Ela dá mais detalhes sobre os bastidores e realização do passeio. Responsável por tudo e por todos, era ela quem distribuía as tarefas em uma relação de confiança mutua.

Peixe fresco.
(arquivo Luã Santos)


As mães perguntavam o que tinham que levar, eu respondia “o que seu filho, o que sua filha gosta de comer”. Nesse juntar de coisas, vinha sacolas com arroz, café, açúcar, farinha, farofa, frutas, tudo isso vinha. Quando chegavam, minha coisas já estavam todas organizadas e eu ia procurar colocar todas essas coisas em cima do lombo do jumentinho, para que nada ficasse para trás. O que não dava pra ir na cangalha tinha que dividir um pouco para cada um levar dependurado na mão, porque a viagem era longa. Eu tinha uma panela grande que cozinhavam 5 quilos de arroz de uma “lapada” só, enchia de tempero e colocava na cabeça forrada com um “ródia” e tocava. Quando saiamos aqui de casa, todos com suas mochilinhas, a gente seguia, seguia viagem, e de vez enquanto no caminho parávamos uns 5 minutinhos para reagrupar e descansar um pouco e isso foi ano após ano e ainda hoje. Só o corona vírus interrompeu isso.

Dona Zilmar.

        Durante a viagem dona Zilmar criava laços familiares com todos os participantes e no fim se tornava “Tia Zilmar”. Reger a orquestra exige a sabedoria de se fazer respeitada, obedecer as regras era importante para que tudo acontecesse de forma harmônica.

O que não obedecesse já sabia como era. Eu era boa, não deixava faltar nada para ninguém, queria que todo mundo obedecesse aquilo que eu pedia para fazer, porque sozinha eu não dava conta. Eu já dizia as regras antes de sair de casa, cada ano que passava aumentava a quantidade de pessoas e os que iam chegando eu ia passando as mesmas informações, que os primeiros já sabiam.

Dona Zilmar.


Barraca dos pescadores - Pontal.
O Pontal está para a Praia do Cutia, assim como o Saquinho está para o próprio Cutia.

 

O grupo de dona Zilmar chegou a ter 115 pessoa, imaginei ai, eram 115 pessoas que caminhavam 16 km (ida e volta) para acampar na Praia do Cutia, um verdadeiro “programa de índio”, mas com o passar do tempo muita coisa foi mudando e o cutia não veria essa quantidade de pessoas reunidas novamente.

Os jovens iam ficando mais velhos, queriam ir embora para outra cidade trabalhar e isso foi um tempo que os passeios começaram a se desfazer. As viagens começaram a ser mais só com os adultos. Muitos começaram a estudar mais, outros foram embora, alguns construíram família e isso aos poucos foi enfraquecendo.

Dona Zilmar.

        Nos anos 2000, a chegada da tecnologia gerou uma revolução no formato da ida ao Cutia, as pessoas deixaram de ir exclusivamente caminhando e os que não gostavam de caminhar ou ter que sair de madrugada tinham uma segunda opção. Aos poucos o racho não parecia mais isolado do mundo real, mas nas lembranças dos que foram nos anos 90 o racho dos cajueiros é o Cutia “raiz”.


Assim como a própria foto, a moto era uma novidade.
(arquivo Luã Santos)


A viagem boa era a caminhada. Depois começaram a ir de bicicleta, moto e juntava muita moto, muita bicicleta no rancho e ai isso foi o quebrou um pouco o clima de isolamento. Ficou indo só as pessoas mais velhas e casais. Hoje é difícil um jovem que vai, mas os casais sempre frequentam. E quando os que viajaram vem visitar, a saudade é grande, faz a gente ir para levar eles.

Todos os passeios foram marcantes. Quando eram os jovens que frequentavam, era mais animado, a gente sentia aquela animação muito grande, com os adultos é diferente, é tudo mais calmo.

Passávamos a noite sob o luar, aquela coisa bonita, ali naquele lugar, na frente do rancho, admirávamos a lua, as estrelas e os planetas. E quando chegava alguém, que vinha de moto, todo mundo corria pra ver, era uma alegria. É muita saudade

Dona Zilmar.

      

 

Raros são os registros dos passeios nessas época, agradecemos a Luã Santos

  Dona Zilmar, cozinheira de mão cheia, não se importava com a fumaça da lenha que fazia seus olhos arderem, pois ela se sentia orgulhosa ao ver todos de barriga cheia e lhe agradava os elogios feitos.

Eu era a chefe da cozinha. Para tomar de conta da cozinha era eu que ajeitava comida para 60, 70, 80 até 115 pessoas, todos sob minha responsabilidade. Na hora da comida, era minha responsabilidade e não ficava ninguém sem comer. Fazia-se uma fila, fosse adulto, jovem ou criança, tinha que  ficar todo mundo com sua colher e seu pratinho, todos na fila. Primeiro as crianças, depois os jovens e adultos. Eu era a última, só sentava para comer depois que todo mundo tinha sido servido.

A refeição principal do Cutia era o arroz e o peixe cozido com caju e os outros temperos. Era um caldo, mas um caldo “profissional”, pra ninguém botar defeito, quem tomava dessa caldo e comia do peixe falava e ainda hoje fala que tem saudade da minha comida, eles dizem para mim que não existe tempero melhor do que o meu e eu me sinto orgulhosa, pois os elogios não são só dos meus filhos e sobrinhos ou amigos, sou elogiada por todos.

Dona Zilmar..

            Esse mês a matriarca da família Ribeiro dos Santos completará 67 anos e o desejo dela é ver sua turma reunida novamente para dar continuidade a essa tradição.

Eu, agora dia 19 de julho, vou fazer 67 anos, mas digo a você que, se hoje tivesse as mesma coisa lá, eu faria igualzinho sem sentir cansaço. Eu não caminharia, eu CAMINHO e nessa idade que tenho não me troco por uma de 40 ou 30 para fazer o que eu faço na orla da praia.

A parte mais desgastante era a volta, principalmente para as crianças. Tinha crianças de 11, 12, 15 anos, alguns mais novos. O retorno era sufocante, porque a gente vinha todo tempo com o sol no rosto, mas eu sempre tinha o cuidado de mandar eles se vestirem com blusa da maga comprida, boné, chapéu, uma toalha por cima da cabeça e a gente vinha. Tinha pessoas que rachavam o beiço, que se assavam e precisavam usar uma toalha como se fosse uma saia, mas quando chegava em casa era muito bom, todo mundo se sentava na área da minha casa e eu desfazendo os sacos que vinham as coisas, eles conversando o que tinha acontecido durante os dias no acampamento, ai era que eu ia saber o que tinha se passado por lá, isso era bom demais. Ouvir as histórias e ver os sorrisos nos rostos deles, já me preparando para a outra viagem do próximo mês ou do próximo ano. Eu queria ver o sorriso nos rostos deles e dos meus filhos que gostavam demais.

Hoje tenho meus netos, mas que parecem que não terão o mesmo ritmo, os pais botam mais dificuldades ou não querem ir e ai fica... meus netos me cobram, mas os pais não tem mais a mesma disponibilidade.

Dona Zilmar..

        O Carta Ilhagrandense aproveita a oportunidade para felicitar e desejar saúde para dona Zilmar, que essa vontade se concretize.

                Ilha Grande – PI, 05 de julho de 2020

Carta Ilhagrandense

Dos autores ao povo.
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