domingo, 21 de fevereiro de 2021

NA VOZ DE UM GRIÔ O REGISTRO DA SABEDORIA POPULAR: manifestações de Patrimônio Cultural Imaterial em Ilha Grande do Piauí

 

NA VOZ DE UM GRIÔ O REGISTRO DA SABEDORIA POPULAR:

manifestações de Patrimônio Cultural Imaterial em Ilha Grande do Piauí

 

José Marcelo Costa dos Santos

(Pesquisador ribeirinho do Delta do Parnaíba)

 

Resumo

 

O presente artigo tece uma discussão sobre Patrimônio Cultural Imaterial, dando ênfase à produção literária poética revelada nos traços de cultura popular presentes no cordel Juninho e o cavalo assassino, de autoria do griô Zé Santana, na cidade de Ilha Grande do Piauí. O objeto de investigação do artigo é a análise desses traços descritivos, como parte da cultura imaterial do povo desse município. Elegeu-se como objetivo do trabalho, analisar os referidos traços culturais, presentes no cordel, como forma de revelar uma das tantas joias da cultura imaterial de Ilha Grande do Piauí, propiciando o conhecimento de aspectos da obra do griô Zé Santana. O estudo se desenvolveu por meio de uma pesquisa de abordagem qualitativa, mediante um estudo documental, e mostrou que a obra em questão pode ser considerada um elemento do patrimônio cultural imaterial do citado município, uma vez que revela aspectos da tradição local e da identidade cultural dessa comunidade. A importância da obra Juninho e o cavalo assassino se insere na memória e na história oral dos habitantes desse lugar, mostrando o griô Zé Santana como um mediador de cultura em Ilha Grande do Piauí.

 

PALAVRAS-CHAVE: Cultura Popular. Ilha Grande do Piauí. Juninho e o cavalo assassino. Zé Santana.

 

1 Introdução

 

Este texto foi desenvolvido durante uma experiência de formação no curso de Mestrado em Artes, Patrimônio e Museologia pela Universidade Federal do Piauí, Campus Ministro Reis Veloso, em 2015, sob a orientação da Prof.ª Dra. Paula Maria de Aristides Oliveira Molinari. O texto original foi apresentado e publicado no Anais do II Congresso de Educação e Afrodescendência – CONGEAfro/UFPI, 2015.

Atualmente, com o entendimento da relação de significação do conceito de material e de imaterial, concebem-se como patrimônios não apenas as peças de acervo, de valor material, mas as manifestações do Patrimônio Imaterial, que abrange desde os fazeres e os dizeres representativos de uma cultura, até as demais formas de construção artística das comunidades (oralidade, cultura, literatura, etc.). Neste âmbito tem-se em evidência a sabedoria popular, a arte do povo.

Na cidade de Ilha Grande do Piauí, verificam-se fortes manifestações de cultura popular, merecendo destaque o morador Raimundo José do Nascimento – o griô Zé Santana. Poeta, compositor, cantor, declamador, cordelista, repentista e artesão, esse cidadão manifesta sua arte por meio de rodas de brincadeira de boi (bumba-meu-boi) locais, bem como através de suas canções e poemas diversos. É pescador e agricultor no território do Delta do Parnaíba, atuando também como vigilante em escolas da rede municipal de Ilha Grande do Piauí.

Suas atividades na área da cultura popular fazem deste ribeirinho um “griô”, portanto, um mestre do povo (PACHECO, 2006), merecendo ênfase, principalmente nos poemas, a sensibilidade com a qual descreve as vicissitudes do habitar nas terras de Ilha Grande. Neste segmento é válido ressaltar o poema “Juninho e o cavalo assassino”, um cordel baseado em um evento trágico que marcou a vida da população local.

Com o intuito de apresentar aspectos do legado cultural do griô Zé Santana, o presente artigo tece uma primeira leitura sobre esse cordel, para apresentar um episódio ocorrido no povoado Cal, atualmente bairro da cidade de Ilha Grande do Piauí, na década de 1990, que ainda hoje é lembrado pelos moradores dessa comunidade.

O objeto de investigação do artigo é a análise dos “traços descritivos da cultura popular ilhagrandense presentes no cordel Juninho e o cavalo assassino, como parte da cultura imaterial do povo desse município”. O estudo buscou responder a seguinte questão norteadora: Quais traços descritivos da cultura popular ilhagrandense estão presentes no cordel Juninho e o cavalo assassino?

Para tanto, elegeu-se como objetivo do trabalho analisar os referidos traços culturais, presentes no cordel, como forma de revelar uma das tantas joias da cultura imaterial de Ilha Grande do Piauí, propiciando o conhecimento de aspectos da obra do griô Zé Santana. Este estudo teve uma abordagem qualitativa (SEVERINO, 2007) e foi desenvolvido com base em um estudo documental, em que o conteúdo investigado se tratou do cordel citado acima.

A análise documental compreende a identificação, verificação ou apreciação de documentos, com objetivo específico sendo, portanto, vedado ao pesquisador alterar ou modificar a fonte analisada (MOREIRA, 2005). O documento em evidência é o cordel “Juninho e o cavalo assassino”.

Esta obra foi cedida pelo griô Zé Santana, o qual concedeu a autorização para que o texto fosse mencionado e analisado neste estudo. A técnica consistiu numa apreciação do cordel em termos de aspectos históricos, linguísticos, literários e de referência ao conceito de Patrimônio Cultural Imaterial.


2 Entendendo Patrimônio Cultural Imaterial

 

A arte como manifestação da cultura popular apresenta aspectos peculiares em relação aos saberes e fazeres de uma comunidade. Compreende desde esculturas, objetos de valor histórico, monumentos, estruturas arquitetônicas às formas de produção voltadas à oralidade. Tudo isso forma o patrimônio de um povo, seja de natureza material, ou de natureza imaterial (CARVALHO, 2011). Assim, as manifestações de cultura devem se constituir como um espaço de interação de saberes e conhecimentos que se renovam e se ampliam constantemente.

Neste aspecto, cabe referenciar a prática do griô Zé Santana, que busca construir sua identidade cultural através de obras que mostram traços da cultura da cidade de Ilha Grande do Piauí, como o cordel “Juninho e o cavalo assassino”, no qual aspectos de vivências e memórias da população da referida cidade são descritos, numa atmosfera poética que possibilita a compreensão do cenário cultural desses moradores nos anos de 1990. Salienta-se que memória é aqui evidenciada como uma atividade sensorial que diz respeito ao patrimônio (herança cultural) no seio de uma comunidade, ou seja:

A memória está diretamente ligada ao patrimônio de um povo, pois gera, a partir da cultura, tomada em manifestações naturais, materiais, um ponto de referência de sua identidade e as fontes de sua inspiração. Assim, o sofrimento de um povo pode ser evidenciado a partir das perdas coletivas a que se submete. Os elementos de uma cultura [...] servem de alças, brasões e insígnias importantes na construção de uma identidade de pertença a um lugar, a uma gente, a uma cultura, enfim. (CARNEIRO, 2006, p. 20).

 

Nesse ensejo, pensar o caráter cultural de um povo é pensá-lo em sua dinâmica de criação e manifestação à luz das raízes materiais e materiais dessa comunidade, que deve sentir-se parte e detentora de seu próprio patrimônio. A partir desses enfoques é possível aferir que, sendo o patrimônio um recurso essencial, é preciso que se construa um entendimento coerente sobre o mesmo, de modo a compreender quais as suas principais implicações e o que estas representam para o desenvolvimento e construção de uma identidade cultural em determinada região.

Obras como “Juninho e o cavalo assassino” podem ser instrumentos nesse processo, por isso a importância de sua salvaguarda como patrimônio cultural, já que a própria história do homem que a produziu já o constitui como um mestre do povo, tornando-se assim conveniente o uso do termo griô para caracterizar o morador Zé Santana.

A palavra griô, ou griot, é de origem africana, mas foi incorporada ao português através do idioma francês. A exressão “griô” é uma forma abrasileirada proposta pelo projeto Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô, de Lençóis-BA. Pacheco (2006, p. 45), com base nos estudos de Amadou Hampâté Bâ (1901-1991, escritor malinês, mestre da tradição oral africana) faz a seguinte caracterização sobre o termo em questão:

Segundo Hampâté Bâ, nas línguas e dialetos da região sul do Saara, noroeste da África, na tradição oral dos grupos étnicos Bambaras e Fulas na região do Mali, de onde se originam os griôs, eles têm diversos nomes e funções sociais, como por exemplo, em Bambara: Diélis, que significa sangue, uma analogia com que circula no organismo vivo. Eles são genealogistas, contadores de histórias, músicos/poetas populares, importantes agentes de cultura.

 

O entendimento do que possa ser considerado um griô deve partir da ideia de que essa figura emblemática é um representante de sua própria cultura, assim reconhecido dentro de sua comunidade, como é exemplo Zé Santana, que possui uma identidade cultural em Ilha Grande do Piauí e seu cordel “Juninho e o cavalo assassino” ilustra seu perfil de griô no seio da sociedade local, logo, uma obra que deve ser considerada elemento do patrimônio ilhagrandense.

Considerando o cenário da referida cidade, percebe-se que faltam ações voltadas à gestão do patrimônio, com vias ao desenvolvimento. Tais ações, no caso do griô Zé Santana, representariam a possibilidade de valorização de seu legado, por meio da salvaguarda de suas obras como patrimônio cultural imaterial do município, concebendo que a cultura viva da população deve ser valorizada, uma vez que trata-se da herança do povo, aspecto essencial na construção de sua identidade cultural – patrimônio.

A palavra patrimônio vem do latim patrimonium, que quer dizer “1. Herança paterna. 2. Bens de família. 3. Riquesa. 4. Os bens materiais ou não, duma pessoa ou empresa”. (FERREIRA, 2001, p. 555). O patrimônio compreende o legado construído durante a história de uma comunidade e repassado para seus descendentes ao longo das gerações.

De acordo com Varine (2013), para que se constitua patrimônio, no entanto, é preciso que o objeto, ou a expressão, seja reconhecido/a e concebido/a pelos membros da comunidade que o/a detém. O povo precisa ser consciente dessa riqueza, ou seja, é necessário que o patrimônio tenha o reconhecimento por parte dos moradores, que devem concebê-lo como seu, pois de outra forma ele não desempenhará o seu papel.

O patrimônio é o DNA do território e da comunidade [...] Ele é ao mesmo tempo o reflexo da evolução anterior dessa comunidade. E é, enfim, suscetível de se transformar por contribuições sucessivas vindas do interior (contribuições endógenas) e do exterior (contribuições exógenas). Como o DNA é a carteira de identidade do indivíduo que o associa à sua linhagem inteira, do mesmo modo o patrimônio é a carteira de identidade da comunidade atual ligada a uma continuidade sem limites. (VARINE, 2013, p. 45).

 

Dessa forma, o patrimônio tende a ser elemento de grande importância para toda sociedade, seja ele de ordem material ou imaterial. Percebe-se que comumente, no que concerne ao museu, consideram-se patrimônios apenas os objetos, as esculturas e os monumentos, pertencentes a determinado território e que são expostos ao público, todavia, na atualidade, vislumbram-se também os ícones representativos de outra forma de patrimônio: não palpável, ou não tangível, apenas manifestado na dinâmica dos fazeres e dos saberes de determinados indivíduos.

Trata-se do Patrimônio Cultural Imaterial que, segundo o texto base da convenção de 2003 para a salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, constitui:

[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (UNESCO, 2003, p. 5).

 

O cordel “Juninho e o cavalo assassino” se enquadra nesta forma de patrimônio, aqui tratado também como “PCI”, pois é representativo da memória local, inspirado sob um fazer artístico de tradição oral (cordel), captado por um morador que possui a habilidade de contar histórias por meio da seleção e organização de falas, expressas pela oralidade (declamações, cantorias) ou por escritas poéticas.

Convém ressaltar que é possível agrupar o Patrimônio Cultural Imaterial em quatro categorias principais, identificadas por Giovanni Pinna (2008), museólogo italiano, e complementadas por Hildegard Vieregg (2009), às quais foram agrupadas em Carvalho (2011, p. 124):

A primeira categoria diz respeito ao PCI que está associado aos objetos representativos e relacionados com uma manifestação cultural de uma comunidade (costumes, rituais, folclore, etc.); a segunda categoria refere-se ao PCI que não tem forma material (língua, tradição oral, memória, música de improviso, dança, etc.). A terceira é a categoria que tem a ver com os significados simbólicos do patrimônio imaterial, ou seja, o significado de cada objeto em função da sua história e das várias interpretações a que foi sujeito. A quarta categoria inclui, de certo modo, a história oral como veículo da memória e identidade, compreendendo o PCI de caráter positivo, mas também o negativo.

 

Percebe-se nesta descrição a diversidade em torno do que se configura como Patrimônio Cultural Imaterial, entretanto, a gestão do PCI continua sendo um processo árduo e que divide opiniões. Tal disparidade se acentua, conforme postula Carvalho (2013, p. 113), devido ao fato de que “preservar, documentar e apresentar o PCI não é uma tarefa fácil e acarreta maior exigência aos profissionais de museus que, de uma forma geral, não estão preparados para isso, nem que seja pela falta de competências específicas”.

Varine (2013), por sua vez, assevera que o patrimônio que não apresenta registro de tombamento, não foi identificado em catálogos, ou não se vale de inventário não é muito visível na sociedade, fato que intensifica a complexidade em tratar essa categoria como instituição física, ou mesmo como representação na comunidade.

Ainda assim, sendo tangível ou não tangível, o patrimônio faz parte da história da humanidade e suas marcas refletem a ação do homem, como responsável pela formação e pela construção de bens, desde monumentos e estruturas arquitetônicas às manifestações de cultura, no âmbito da música, da dança, do ritual, enfim, das linguagens.

 

3 Juninho e o cavalo assassino

 

Raimundo José do Nascimento, o Zé Santana, é natural de Ilha Grande do Piauí, município que abrange uma área de 121,96 km2, e apresenta os seguintes limites: ao norte, o oceano Atlântico; ao sul, o município de Parnaíba; a leste, Parnaíba e o oceano Atlântico; e a oeste, o estado do Maranhão (AGUIAR, 2004).

Esta cidade foi criada pela Lei nº 4.680, de 26 de janeiro de 1994, sendo desmembrada do município de Parnaíba. Em relação às manifestações culturais, tem-se a prática das músicas de repentes e/ou das toadas, os cordéis, as cantigas das “pastorinhas” e a música popular. Neste cenário, Zé Santana pode ser considerado um destaque: desde a adolescência esteve envolvido em atividades ligadas à cultura, principalmente participando como líder de grupos de brincadeira de boi.

 

 

Figura 01: Zé Santana em atividade na brincadeira de boi (década de 1990)

Fonte: Acervo particular do griô

 

Este griô participou de festivais de poemas e músicas populares e teve uma de suas composições incluída em uma coletânea organizada por um grupo religioso da localidade. Compôs letras e dedilhou canções (Zé Santana cria suas melodias por meio de assobios, ou seja, vai assobiando e encontrando os tons mais adequados para cada composição) que retratam o caranguejo uçá, as pastorinhas, o Delta do Parnaíba, dentre outras formas de referências culturais. Referências que são tratadas aqui como:

[...] as artes, os ofícios, as formas de expressão e os modos de fazer. São as festas e os lugares a que a memória e a vida social atribuem sentido diferenciado: são as consideradas mais belas, são as mais lembradas, as mais queridas. São fatos, atividades e objetos que mobilizam a gente mais próxima e que reaproximam os que estão longe, para que se reviva o sentimento de participar e de pertencer a um grupo, de possuir um lugar. Em suma, referências são objetos, práticas e lugares apropriados pela cultura na construção de sentidos de identidade, são o que popularmente se chama de raiz de uma cultura. (BRASIL, 2000, p. 29).

 

Representar sua cultura por meio de sua arte é o que Zé Santana faz, tendo em vista que há décadas dedica-se à composição de toadas, de músicas populares, bem como de poemas sobre elementos característicos do território de Ilha Grande. Recentemente, gravou um CD artesanal, no qual as músicas se assemelham em muito aos ritos do repente e das toadas.

O griô distribuiu cópias pela cidade, mas nem mesmo nas rádios locais suas melodias foram difundidas, retrato do descaso com que é tratado o patrimônio cultural no país. Não há um mecanismo de gestão para estas atividades, fator ambíguo se levado em consideração o que reza a Constituição Federal sobre a Gestão do Patrimônio Cultural.


Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais - Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012. (BRASIL, 2012, s/p).

 

Segundo o inciso III deste artigo, é dever do Sistema Nacional de Cultura, em parceria com as representações estaduais e municipais, fomentarem a produção, a difusão e a circulação de conhecimento e de bens culturais no país. Varine (2013) enfatiza a necessidade da gestão do patrimônio, para que permaneça e seja concebido como bem cultural do povo, pois uma cultura, ainda que rica e diversificada, se não for devidamente mediada, tende a se extinguir. Por isso o autor chama a atenção para a necessidade de ações para a gestão desse patrimônio.

Como griô, Zé Santana tem como uma das maiores reperesentações entre o povo, o cordel sobre a morte prematura de um garoto conhecido pelos populares como “Juninho”. Trata-se de uma composição poética de 41 estrofes e 246 versos, organizados em sextilhas, com rimas irregulares.

O poema “Juninho e o cavalo assassino” reflete a criatividade do autor que, mesmo desconsiderando conceitos teóricos de métrica e de rimas poéticas, compôs suas estrofes por meio de rimas interpoladas e encadeadas em diferentes posições, trazendo ritmo e musicalidade aos versos.


 

Juninho e o cavalo assassino

 

 (1) Oh Virgem Mãe Poderosa

Do Santo e Eterno Divino

Dai-me força e veia poética

Para o meu raciocínio

Pra contar a história de Júnior

E do cavalo assassino.

 

(2) No ano Noventa e Três

A 24 de dezembro

No povoado do Cal

Deu-se um caso estupendo

D`um cavalo e um menino...

Vou ver se ainda me lembro.

 

(3) Eu vou contar a história...

Preste atenção eleitor

No dia do acontecido

Até a Terra chorou

Com pena da criancinha

Que o cavalo matou.

 

t(4) Júnior era seu nome

Pela pia batismal

Era querido de todos

Lá na região do Cal

Com cinco anos de idade

Gostava de animal.

 

(5) Cada ser humano

Ao nascer traz um destino

Um nasce pra morrer velho

Outro morre menino

Preste atenção eleitor

A morte deste menino

 

(6) Um dia de sexta-feira

Antes do meio-dia

Foi à casa da madrinha

Com a maior alegria

Pedir para banhar o cavalo

Era o que ele queria

 

(7) A madrinha disse está certo

Vá o cavalo banhar

Mas você vá com cuidado

Neles não podes montar

E por favor não demore

Venha para almoçar.

 

(8) A criancinha saiu

Para cumprir seu destino

Foi em direção ao rio

Com pouco raciocínio

Sem saber que o cavalo

Era o seu assassino

 

 (9) Chegou na beira do rio

Quando o cavalo parou

Júnior pegou o cabresto

No bracinho colocou

Acolheu a corda no braço

Dentro d`água mergulhou.

 

 (10) O cavalo Asa Branca

Dentro das águas nadou

Quando topou em terra

Ele pode se espantar

E nesta hora Juninho

Não pode se desatar.

 

(11) Juninho começou a chorar

Naquela grande agonia

Se valendo de Jesus

Da Santa Virgem Maria

Quanto mais ele chorava

Mais o cavalo corria

 

(12) Asa Branca corria

Como um monstro endiabrado...

O Juninho quase morto

Sendo por ele arrastado

O caminho estava seco

De sangue ficou molhado

 

(13) O cavalo deixou a terra

E seguiu no carroçal

Correndo muito assanhado

Aquele bruto animal

Arrastando aquela criança

Por cima de pedra e pau.

 

(14) Três homens entram na frente

Do Asa Branca assanhado

Pra defender a criança

Mas foi triste o resultado

Pois o corpo de Juninho

Estava todo quebrado

 

 (15) O cavalo encantuado

Ali por três cidadãos

Encatuado na cerca

Bufando como um dragão

Juninho ainda

Só batia o coração

 

 (16) O vaqueiro Antônio Hora

Que estava no local

Pegou o corpo de Juninho

Levou para o hospital

Mas antes da cirurgia

Chegou sua hora final.

 

(17) Então o vaqueiro voltou

Com o corpo do menino

O povo todo esperava

Com o maior desatino

As lágrimas banhavam o chão

A igreja tocava o sino.

 

(18) Quando correu a notícia

Que Juninho morreu

A comunidade do Cal

Com isso se entristeceu

Por ser o caso mais triste

Que aqui aconteceu.

 

(19) Na hora do velório

Foi grande a lamentação

O padrinho de Juninho

Chorou sem consolação

Vendo os amiguinhos dele

Ali perto do caixão

 

(20) Os avós dele diziam

Deus há de ter fazer jus

Os anjos estão contigo

Rodeados de luz

Porque você foi um mártir

Na presença de Jesus.

 

(21) Levaram o caixão de Juninho

Todo enfeitado de flor

A juventude rezando

Com o coração cheio de dor

A igreja bradou o sino

Os anjos cantavam em louvor.

 

 (22) Aqui deixamos Juninho

Com o corpo sepultado

A alma com o rei da Glória

Dos anjos acompanhados

Pra falar em Asa Branca

O cavalo condenado.

 

 (23) O cavalo Asa Branca

O dono quis matar

Pois matar tinha sentido

Ele achou melhor soltar

Deu carta de alforria

Pra ele perambular...

 

 (24) Depois dos 7 dias

Que menino se enterrou

O padrinho de Juninho

O seu cavalo soltou

Ele foi direto ao rio

Cheirou as águas e voltou.

 

 (25) D`água não quis beber

Voltou na mesma pisada

Foi ao portão da fazenda

Se despedir da morada

Deu um relincho tão forte

Que estremeceu a manada.

 

 (26) Naquele mesmo momento

O cavalo foi embora

Deixou tristeza e saudade

E saiu de mundo a fora

Foi com destino a outro pasto

Só andava as zero hora

 

 (27) Quando o cavalo partiu

O dono triste ficou

Fechou a estribaria

Outro nunca mais comprou

Por lembrar-se de Juninho

Que Asa Branca matou

 

 (28) No dia da vaquejada

Ele começa a pensar

No seu cavalo Asa Branca

Que não pode mais montar

Pra derrubar touro bravo

Tirar emprimeiro lugar.

 

 (29) É triste a situação

Do desse cavalo

Pensando no seu afilhado

Porque era seu amado

Pensava no Asa Branca

Que corria atrás de gado.

 

 (30) Todo 23 de junho

Tem uma grande animação

Na fazenda Cutia

Na pega do barbatão

O cavalo Asa Branca

Era sempre campeão.

 

 (31) Já estava com três anos

Aquele triste acontecido

A juventude lembrava-se

Do Juninho falecido

E do cavalo Asa Branca

Nunca mais aparecido.

 

 (32) Já dentro dos anos

Que comentava a história

Um dia foi campear

O vaqueiro Antônio Hora

Avistou Asa Branca

Em cima das onze horas.

 

 (33) Ele estava em uma sombra

Começando a cochilar

Quando ele pressentiu

Um alguém perto a pisar

Era o vaqueiro Antônio Hora

Que vinha se aproximar...

 

 (34) O vaqueiro aproximou-se

O cavalo não fez ação

Estava fraco sem coragem

Naquele vasto sertão

Magro, com as crinas grandes

Que quase arrastava no chão.

 

 (35) O cavalo despertou

Daquele pequeno sono

Como quem diz ao vaqueiro

Dá notícia pro meu dono

Que está com 4 anos

Que estou no abandono

 

 (36) O vaqueiro veio embora

Com uma dor no coração

Por ter visto Asa Branca

Naquela situação

Magro, sujo e desprezado

Naquele seco sertão.

 

 (37) Quando o vaqueiro chegou

Foi ao patrão contar

Que tinha visto Asa Branca

Magrinho pra se acabar

Patrão eu estou lhe pedindo

Deixe o cavalo eu ir buscar.

 

 (38) O patrão disse está certo

De mim terá seu cartaz

Eu quero ver Asa Branca

Que o Júnior eu não vejo mais

Até gente Deus perdoa

Que dirá os animais.

 

(39) Asa Branca voltou

Para sua estribaria...

O Juninho não volta mais

Está com a Virgem Maria

Rezando no céu por nós

Toda noite e todo dia.

 

 (40) Toda véspera de Natal

Esse caso é lembrado...

Aquela comunidade

Não esquece o passado

Lembra-se de Juninho

Que foi martirizado.

 

 (41) Aqui termino a história

Do caso que foi passado

A história de Juninho

Que morreu martirizado

Pelo cavalo Asa Branca

Aquele monstro assombrado.

 


 

Figura 02: Porto do bairro Cal - Ilha Grande - PI

Fonte: Acervo particular de Jorge Cruz


As estrofes acima retratam o martírio de Juninho. Nos povoados da região, quando este cordel era declamado pelo autor, quem não presenciou a tragédia tinha nítida ideia de como ocorreu e quem foi testemunha, emocionava-se ao relembrar o fato. Zé Santana transporta para as letras a carga de emoção e de sentimentalismo que a morte do garoto representou para os moradores do povoado Cal e para a população do entorno.

A tragédia ocorrida com Juninho trouxe um sentimento de luto e consternação. Os moradores se conheciam, famílias tinham parentescos com a criança, Juninho estudava na Unidade Escolar Menino Deus, no Cal, onde era amigo do autor deste artigo, que ainda se emociona ao ler o cordel e relembrar o episódio trágico. Essas relações intensificaram ainda mais a atmosfera fúnebre daquela fatídica tarde em que os ribeirinhos choraram a dor da partida desse menino.

Fazendo uso de sua habilidade artística, Zé Santana transformou a narrativa do episódio em um conjunto de construções poéticas, que passam a mensagem e se fazem entendíveis para todos os grupos de populares da região. O griô em questão fez uso, ainda que inconscientemente, do que Roman Jakobson, linguista norte-americano, identifica como funções da linguagem, às quais são apreciadas em Kato (2004) e em Vanoye (2003).

No caso do poema, há evidência das funções referencial, emotiva e poética. A primeira se revela no fato de que a mensagem passada no poema é facilmente entendida pelo interlocutor, situando-o no tempo, espaço e atmosfera em que acontece o fato; a segunda é evidenciada pela ação do eu poético (a voz que se apresenta nos versos das estrofes do poema) numa atmosfera de subjetividade que prende o leitor ou o ouvinte no enredo da obra; e a terceira se dá, dentre outros aspectos, pela composição do poema, na escolha dos versos e na combinação dos mesmos, que produzem um efeito de musicalidade que facilita o entendimento (VANOYE, 2003).

Com estas propriedades, a obra “Juninho e o cavalo assassino” se tornou popular e seu autor conhecido pelos moradores da comunidade, o que a torna um elemento de patrimônio cultural imaterial para cidade de Ilha Grande do Piauí, tendo em vista que elucida a tradição da contagem de história, no caso uma história verossímil, real, de modo criativo e atraente ao ouvinte, estabelecendo relação entre a comunidade e sua própria tradição, por meio de um processo de observação, registro, construção e apropriação.

O tipo de discurso expresso nos versos que compõem as estrofes do cordel se configura em um processo semiótico discursivo, que contempla a relação do conteúdo do texto com a sociedade e a sua própria história de vida (BARROS, 2008), isto é, o cordel (texto poético) se constitui em uma organização de versos os quais produzem sentido e relação com um objeto de significação do leitor, ou do ouvinte (uma tragédia local) que lê, ouve e compreende o papel dos sujeitos envolvidos: a ação sofrida pelo protagonista (o menino Juninho) e o ato exercido pelo antagonista (o cavalo Asa Branca).

Trata-se de um discurso, expresso por um eu poético (a voz que se manifesta nos versos do cordel) saudosista, que revela traços da cultura local. O primeiro exemplo é a relação com o rio: como o próprio nome enuncia (Ilha Grande), trata-se da maior ilha do território do Delta do Rio Parnaíba e uma das três que pertencem ao Estado do Piauí (AGUIAR, 2004).

Para os moradores desse território, o rio representa a base da sobrevivência, pois todos os dias saem em suas canoas, ou em chalanas, e vão explorar as riquezas do Delta: a pesca, a cata do caranguejo, do marisco, bem como a agricultura, tendo como base o cultivo do arroz e do feijão. E ainda, na atualidade, a atividade turística (passeios pelos rios e igarapés) ganha força, por meio da qual muitos ilhagrandenses conseguem sua renda familiar.

No cordel, a cena do início do ocorrido (estrofes 06, 07, 09 e 10) com o garoto Juninho mostra a relação estreita do povo ilhagrandense com o fluvial: o costume de usar o rio para deleite em suas águas e para a limpeza e alimentação dos animais, fatores característicos da comundades que se formam à margem de riachos e/ou igarapés.

O segundo traço é a religiosidade (estrofe 01,11, 22 e 38), muito comum na tradição popular do território. A questão do credo é disseminada desde os primeiros anos da infância e na década em que ocorrera o fato (anos 90 do século XX), havia uma forte influência dos ritos e da filosofia da Igreja Católica no povoado Cal e em suas adjacências: romarias no mês de maio, procissões de santos, dentre outras.

Outra questão que merece destaque é visão poética do autor, tendo em vista que retrata o flagelo de Juninho e sua fragilidade em relação ao seu algoz: o cavalo Asa Branca. No entanto, a partir da vigésima quinta estrofe, o poema retrata o outro lado da história, o destino do cavalo que, condenado por todos, foi abandonado para morrer.

Zé Santana, agora fazendo uso de um eu poético ora indignado, ora saudoso, ora piedoso, fala do sofrimento do animal, que fora encontrado tempos após a tragédia da morte de Juninho, pelo mesmo vaqueiro que o freara durante o ocorrido. Vale ressaltar que não se tem em registro, considerando a análise do cordel, se o suposto reencontro entre cavalo e vaqueiro foi real ou se é fruto da imaginação criativa do autor em seu processo de inspiração poética.


Fato é que nesta parte do poema, mais um traço representativo da cultural ilhagrandense é percebida: a tradição das vaquejadas na Fazenda Cutia, local destinado à pecuária extensiva, onde muitos pequenos criadores cultivam seus rebanhos. No cenário dessa grande fazenda, vários repentes foram criados, muitas toadas foram inspiradas, tecidas pela criatividade de griôs, como é o caso de Zé Santana.

É também no território do Cutia que se desenvolvem a cata da castanha de caju e a do murici, produtos que complementam a receita econômica de muitas famílias ribeirinhas até os dias atuais. Além disso, situa-se nas extensões da Fazenda Cutia grandes lagoas como o Tanque, o Poço, a Lagoa Grande, o Mandi, dentre outras, nas quais ocorre a pesca artesanal desenvolvida pelos moradores da região.

Identifica-se ainda, como um traço cultural no cordel, o costume de badalar o sino durante os cortejos ou vigílias fúnebres. O ritual sonoro se traduz em mensagem de pesar, de tristeza pela perda anunciada, o que torna aflorada a sensibilidade e a emoção dos moradores que acompanham essas cerimônias.

Nesse ensejo, torna-se perceptível a importância da obra “Juninho e o cavalo assassino” para o PCI da cidade, uma vez que o patrimônio e a arte que neles se inserem fazem parte da memória e da história oral local, tornando o griô Zé Santana uma figura caricatural, um mediador, da cultura da comunidade de Ilha Grande do Piauí.

 

4 Considerações finais

 

O estudo mostrou que há traços representativos da cultura popular de Ilha Grande do Piauí no cordel “Juninho e o cavalo assassino”, do griô Zé Santana. A relação dos ilhagrandenses como rio, a religiosidade aflorada na região, as antigas tradições das vaquejadas na Fazenda Cutia, bem como os rituais típicos da comunidade local são descritos no cordel.

Ratificou-se assim, a importância desta obra para o Patrimônio Cultural Imaterial da cidade, revelando Zé Santana como um verdadeiro griô, que constrói sua identidade através das obras que compõe, às quais espelham as dinâmicas do cotidiano e da cultura do povo ribeirinho desse território.

Neste ensejo, considera-se que o objetivo proposto foi alcançado, tendo em vista que a análise da presença de traços culturais, no supracitado cordel, mostrou aspectos da cultura imaterial de Ilha Grande do Piauí, a partir do conhecimento de elementos da obra do griô Zé Santana.

Acredita-se que o legado deste griô poderá ser salvaguardado como herança da cultura imaterial do município a partir de iniciativas que possibilitem a Zé Santana ampliar o alcance de sua obra para toda a cidade, de modo que as novas e futuras gerações tenham acesso aos cordéis, às músicas, às toadas e aos demais feitos artísticos do griô.

Para isso, ações como a realização de um festival de cultura popular, a organização de uma cartilha educativa a partir das obras de Zé Santana, ou ainda a produção de um documentário que retrate os fazeres e dizeres desse griô, mostrando sua importância para a cultura imaterial da cidade, são viáveis.

Esta pesquisa não encerra as discussões sobre o tema, uma vez que se traçou uma primeira leitura sobre a obra de Zé Santana, uma literatura vasta que sugere análises mais aprofundadas, para que as atividades deste griô ganhem mais representatividade no cenário do município e para além deste.

  Ilha Grande – PI, 21 de fevereiro de 2021.

Carta Ilhagrandense.

Dos autores ao povo.


 

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